I
Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. O espelho inquietava o fundo de um corredor numa quinta da rua Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falazmente se chama The Anglo- American Cyclopædia (Nova York, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopædia Britannica de 1902. O acontecimento ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e demorou-nos uma vista polêmica sobre a elaboração de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores — a muito poucos leitores — a adivinhação de uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (na noite alta esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem dessa memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclopædia a consignava, em seu artigo sobre Uqbar. A quinta (que havíamos alugado mobiliada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas do volume XLVII achamos um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII, um sobre Ural-Altaic Languages mas nem uma palavra a respeito de Uqbar. Bioy um pouco perturbado, consultou os volumes do índice. Esgotou em vão todas as lições imagináveis: Ukbar, Ucbar. Ooqbar. Oukbahr… Antes de sair, explicou-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor. Confesso que assenti com certo mal-estar. Conjeturei que esse país indocumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos atlas de Justus Perthes fortaleceu minha dúvida.
No dia seguinte, Bioy me telefonou de Buenos Aires. Disse-me que tinha à vista o artigo sobre Uqbar, no volume XLVII da Enciclopédia. Não constava o nome do heresiarca, mas sim a notícia de sua doutrina, formulada em palavras quase idênticas às repetidas por ele, ainda que — talvez — literariamente inferiores. Ele concordava: Copulation and mirrors are abominable. O texto da Enciclopédia dizia: Para um desses gnósticos, o universo visível era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are abominable) porque o multiplicam e o divulgam. Eu lhe disse, sem faltar à verdade, que gostaria de ver esse artigo. Em poucos dias ele o trouxe. O que me surpreendeu, porque os escrupulosos índices cartográficos da Erdkunde de Ritter ignoravam completamente o nome de Uqbar.
O volume que Bioy trouxe era efetivamente o XLVI da Anglo-American Cyclopædia. No ante-rosto e na lombada, a indicação alfabética (Tor — Ups) era a de nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas constava de 921. Essas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uqbar; não previsto (como terá o leitor observado) pela indicação alfabética. Depois comprovamos que não havia outra diferença entre os volumes. Os dois (conforme creio haver apontado) eram reimpressões da décima Encyclopædia Britannica. Bioy adquirira seu exemplar num de tantos leilões.
Lemos com certo cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy era talvez a única surpreendente. O resto parecia muito verossímil, muito ajustado ao tom geral da obra e (como é natural) um pouco maçante. Relendo-o, descobrimos sob sua rigorosa forma uma fundamental vaguidade. Dos 14 nomes que figuravam na parte geográfica, apenas reconhecemos três — Jorasã, Armênia, Erzerum — interpolados no texto de um modo ambíguo. Dos nomes históricos, um só: o impostor Esmerdis, o mago, invocado mais como metáfora. A nota parecia precisar as fronteiras de Uqbar, mas seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e cadeias dessa mesma região. Lemos, por exemplo, que as terras baixas de Tsai Jaldun e o delta do Axa definem a fronteira do Sul e que nas ilhas desse delta procriam os cavalos selvagens. Isso, no começo da página 918. Na seção histórica (página 920) soubemos que, por causa das perseguições religiosas do século XIII, os ortodoxos buscaram amparo nas ilhas, onde ainda perduram seus obeliscos e onde não é raro exumar seus espelhos de pedra. A seção idioma e literatura era breve. Um único traço memorável: anotava que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico e que suas epopéias e suas lendas não se referiam nunca à realidade mas às duas regiões imaginárias de Mlejnas e de Tlön… A bibliografia enumerava quatro volumes que não encontramos até agora, embora o terceiro — Silas Haslam: History of the Land called Uqbar, 1874 — figure nos catálogos da livraria de Bernard Quaritch. O primeiro. Lesbare und lesenswerthe Bemerkungen über das Land Ukkbar in Klein-Asien, data de 1641 e é obra de Johannes Valentinus Andreä. O fato é significativo; um par de anos depois, deparei com esse nome nas inesperadas páginas de De Quincey (Writings, volume XIII) e soube que era o de um teólogo alemão que, em princípios do século XVII, descreveu a imaginária comunidade da Rosa Cruz — que outros fundaram, à imitação do prefigurado por ele.
Aquela noite visitamos a Biblioteca Nacional. Em vão molestamos atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de viajantes e historiadores: ninguém estivera jamais em Uqbar. O índice geral da en- ciclopédia de Bioy tampouco registrava esse nome. No dia seguinte. Carlos Mastronardi (a quem eu relatara o assunto) reparou numa livraria de Corrientes e Talcahuano as pretas e douradas lombadas da Anglo-American Cyclopædia. Entrou e consultou o volume XLVI. Naturalmente, não en- controu o menor indício de Uqbar.
II
Alguma lembrança limitada e diluída de Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do Sul, persiste no Hotel de Adrogué, entre as efusivas madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida padeceu de irrealidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer o fantasma que já era então. Era alto e enfastiado, e sua cansada barba retangular fora ruiva. Acho que era viúvo, sem filhos. De tempos em tempos ia à Inglaterra: visitar (julgo por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns carvalhos. Meu pai estreitava com ele (o verbo é excessivo) uma dessas amizades inglesas que começam por excluir a confidência e que muito depressa omitem o diálogo. Costumavam manter intercâmbio de livros e de jornais; costumavam medir-se ao xadrez, taciturnamente… Recordo-o no corredor do hotel, com um livro de matemática na mão, contemplando, às vezes, as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde falamos do sistema duodecimal de numeração (no qual 12 se escreve dez). Ashe disse que precisamente estava trasladando não sei que tabelas duodecimais a sexagesimais (nas quais sessenta se escreve dez). Acrescentou que esse trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul. Há oito anos que o conhecíamos e nunca se referira a sua estada naquela região… Falamos de vida pastoril, de Capangas, da etimologia brasileira da palavra gaucho (que alguns velhos orientais ainda pronunciam gaúcho) e nada mais se disse — Deus me perdoe — de funções duodecimais. Em setembro de 1937 (nós não estávamos no hotel). Herbert Ashe morreu da ruptura de um aneurisma. Dias antes recebera do Brasil um pacote lacrado e registrado. Era um livro em oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde — meses depois — o encontrei. Pus-me a folheá-lo e senti uma ligeira vertigem de assombro que não descreverei, porque esta não é a história de minhas emoções, mas de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do Islã, que se chama a “Noite das Noites”, abrem-se de par em par as secretas portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se abrissem, não sentiria o que senti naquela tarde. O livro estava redigido em inglês e o compunham 1001 páginas. Na amarela lombada de couro li estas curiosas palavras que o ante- rosto repetia: A First Encyclopædia of Thin. Vol. XI. Hlaer to Jangi: Não havia indicação de data nem de lugar. Na primeira página e numa folha de papel de seda que cobria uma das lâminas coloridas, estava impresso um óvalo azul com esta inscrição: Orbis Tertius. Fazia dois anos que eu descobrira num volume de certa enciclopédia pirática uma sumária descrição de um falso país; agora o acaso me mostrava algo de mais precioso e mais árduo. Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e seus debates, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus minerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem visível propósito doutrinal ou tom paródico.
No “11° volume” de que falo, há alusões a volumes ulteriores e prece- dentes. Nestor Ibarra, num artigo já clássico da N.R.E, negou a existência de tais volumes; Ezequiel Martinez Estrada e Drieu La Rochelle refutaram, quiçá vitoriosamente, essa dúvida. O fato é que até agora as pesquisas mais diligentes têm sido estéreis. Em vão desarrumamos as bibliotecas das Américas e da Europa. Alfonso Reyes, saturado dessas fadigas subalternas de índole policial, propõe que todos empreendamos a obra de reconstruir os muitos e maciços volumes que faltam: ex ungue leonem. Calcula, entre jocoso e sério, que uma geração de tlönistas pode bastar. Esse arriscado computo nos retrai ao problema fundamental: quais os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese de um só inventor —de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na modéstia — fora descartada unanimemente. Conjectura-se que este brave new world é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de me- tafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras… dirigidos por um obscuro homem de gênio. Muitos são os indivíduos que dominam essas disciplinas diversas, mas não os capazes de invenção e menos os capazes de subornar a invenção a um rigoroso plano sistemático. Esse plano é tão vasto que a contribuição de cada escritor é infinitesimal. No começo pensou-se que Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas, ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as contradições aparentes do Décimo Primeiro Volume são a pedra fundamental da prova de que existem os outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se observou. As revistas populares divulgaram, com perdoável excesso, a zoologia e a topografia de Tlön; acredito que seus tigres transparentes e suas torres de sangue não merecem, talvez, a contínua atenção de todos os homens. Atrevo-me a pedir alguns minutos para seu conceito do universo.
Hume notou em definitivo que os argumentos de Berkeley não admitiam a menor réplica e não causavam a menor convicção. Esse ditame é totalmente verídico em sua aplicação à Terra; totalmente falso em Tlön. As nações desse planeta são — congenitamente — idealistas. Sua linguagem e as derivações de sua linguagem — a religião, as letras, a metafísica — pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial. Não há substantivos na conjetural Urspracke de Tlön, da qual procedem os idiomas “atuais” e os dialetos: há verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra que corresponda à palavra lua, mas há um verbo que seria em espanhol lunecer ou lunar. Surgiu a lua sobre o rio diz-se hlör u fang axaxaxas mlö, ou seja, em sua ordem: para cima (upward) atrás duradouro-fluir lualuziu. (Xul Solar traduz sinteticamente: upa tras perfluyue lunó. Upward. behind the onstreaming, in mooned.)
O que antes foi dito se refere aos idiomas do hemisfério austral. Nos do hemisfério boreal (sobre cuja Ursprache há bem poucos dados no Décimo Primeiro Volume) a célula primordial não é o verbo, mas o adjetivo mo- nossilábico. O substantivo se forma por acumulação de adjetivos. Não se diz lua: diz-se aéreo-claro sobre escuro-redondo ou qualquer outro acréscimo. No caso escolhido, a massa de adjetivos corresponde a um objeto real; o fato é puramente fortuito. Na literatura desse hemisfério (como no mundo subsistente de Meinong), são muitos os objetos ideais, convocados e dissolvidos num momento, conforme as necessidades poéticas. Determina-os, às vezes, a mera simultaneidade. Há objetos compostos de dois termos, um de caráter visual e outro auditivo: a cor do nascente e o remoto grito de um pássaro. Há alguns de múltiplos: o sol e a água contra o peito do nadador, o vago rosa trêmulo que se vê com os olhos fechados, a sensação de quem se deixa levar por um rio e também pelo sonho. Esses objetos de segundo grau podem combinar-se com outros; o processo, mediante certas abreviaturas, é praticamente infinito. Há poemas famosos compostos de uma só enorme palavra. Essa palavra integra um objeto poético criado pelo autor. O fato de que ninguém acredite na realidade dos substantivos faz, paradoxalmente, que seja interminável seu número. Os idiomas do hemisfério boreal de Tlön possuem todos os nomes das línguas indo-européias — e muitos outros mais.
Não é exagero afirmar que a cultura clássica de Tlön abrange uma única disciplina: a psicologia. As outras estão subordinadas a ela. Mencionei que os homens desse planeta concebem o universo como uma série de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo. Spinoza confere a sua inesgotável divindade os atributos da extensão e do pensamento; ninguém compreenderia em Tlön a justaposição do primeiro (que apenas é típico de certos estados) e do segundo — que é um sinônimo perfeito do cosmos. Antes, com outras palavras: não concebem que o espacial perdure no tempo. A percepção de uma fumaceira no horizonte e depois do campo incendiado e depois do charuto meio apagado que produziu a queimada é considerada um exemplo da associação de idéias.
Esse monismo ou idealismo total invalida a ciência. Explicar (ou julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em Tlön, é um estado posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado anterior. Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo — id est, de classificá-lo — importa em falseio. Disso caberia deduzir que não há ciências em Tlön. — nem sequer raciocínios. Mas a paradoxal verdade é que existem, em quase incontável número. Com as filosofias acontece o que sucede com os substantivos no hemisfério boreal. O fato de que toda filosofia seja de antemão um jogo dialético, uma Philosophie des Als Ob, contribui para multiplicá-las. Sobram os sistemas incríveis, mas de construção agradável ou de tipo sensacional. Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade, nem sequer a verossimilhança: buscam o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que um sistema não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles. Até a frase “todos os aspectos” é inaceitável, porque supõe a impossível adição do instante presente e dos pretéritos. Nem é lícito o plural “os pretéritos”, porque supõe a outra operação impossível… Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como lembrança presente. Outra escola declara que transcorreu já todo o tempo e que nossa vida é apenas a lembrança ou reflexo crepuscular, e sem dúvida falseado e mutilado, de um processo irrecuperável. Outra, que a história do universo — e nela nossas vidas e o pormenor mais tênue de nossas vidas — é a escritura que produz um deus subalterno para entender-se com um demônio. Outra, que o universo é comparável a essas criptografias nas quais não valem todos os símbolos e que só é verdade o que sucede cada trezentas noites. Outra, que enquanto dormimos aqui, estamos despertos em outro lado e que assim cada homem é dois homens.
Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escândalo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos clareza que fervor, como quem expõe um paradoxo. Para facilitar o entendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do século XI ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome escandaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Desse “raciocínio especioso” há muitas versões, nas quais o número de moedas e o número de achados variam; eis aqui a mais comum:
Terça-feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Quinta-feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira à tarde, Z descobre três moedas no caminho. Sexta-feira de madrugada, X encontra duas moedas no corredor de sua casa. O heresiarca queria deduzir dessa história a realidade — id est, a continuidade — das nove moedas recuperadas. É absurdo (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça e quinta-feira, três entre terça feira e a tarde de sexta-feira, duas entre terça feira e a madrugada de sexta-feira. É lógico pensar que existiram — ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens — em todos os momentos desses três prazos.
A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os demais não o entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se, no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma falácia verbal, embasada no emprego temerário de duas vozes neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos en- contrar e perder, que comportavam uma petição de princípio, porque pressupunham a identidade das nove primeiras moedas e das últimas. Recordaram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, quarta- feira, chuva) somente tem um valor metafórico. Denunciaram a pérfida circunstância um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira, que pressupõe o que se procura demonstrar: a persistência das quatro moedas entre quinta e terça-feira. Explicaram que uma coisa é igualdade e outra, identidade e formularam uma espécie de reductio ad absurdum, ou seja, o caso hipotético de nove homens que em nove noites sucessivas padecem uma dor viva. Não seria ridículo — perguntaram — pretender que essa dor fosse a mesma? Disseram que ao heresiarca movia-o apenas o blasfematório propósito de atribuir a divina categoria de ser a umas simples moedas e que, as vezes, negava a pluralidade e outras, não. Argumentaram: se a igualdade abrangesse a identidade, seria necessário admitir, do mesmo modo, que as nove moedas eram uma só.
Incrivelmente, essas refutações não resultaram definitivas. Ao fim de cem anos de proposição do problema, um pensador não menos brilhante que o heresiarca, mas de tradição ortodoxa, suscitou uma hipótese muito audaz. Essa conjetura feliz afirmava que há um só sujeito, que esse sujeito indivisível é cada um dos seres do universo e que estes são os órgãos e máscaras da divindade, X é Y e Z, Z descobre três moedas, porque se lembra que X as perdeu; X encontra duas nos corredor porque se lembra que foram recuperadas as outras… O décimo primeiro volume deixa entender que três razões capitais determinaram a vitória total desse panteísmo idealista. A primeira, o repúdio do solipsismo; a segunda, a possibilidade de conservar a base psicológica das ciências; a terceira, a possibilidade de conservar o culto dos deuses. Schopenhauer (o apaixonado e lúcido Schopenhauer) formula uma doutrina muito semelhante no primeiro volume de Parerga und Paralipomena.
A geômetra de Tlön compreende duas disciplinas um pouco distintas: a visual e a tátil. A última corresponde à nossa e a subordinam à primeira. A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Essa geometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca modifica as formas que o circundam. O fundamento de sua aritmética é a noção de números indefinidos. Acentuam a importância dos conceitos de maior e menor, que nossos matemáticos simbolizam por > e por <. Afirmam que a operação de contar modifica as quantidades e as converte de indefinidas em definidas. O fato de que vários indivíduos que contam uma mesma quantidade obtenham resultado igual é, para os psicólogos, um exemplo de associação de idéias ou de bom exercício da memória. Já sabemos que em Tlön o sujeito do conhecimento é uno e eterno.
Nos hábitos literários é também todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito do plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um só autor. que é intemporal e anônimo. A crítica costuma inventar autores: escolhe duas obras dissimiles — o Tiro Te King e as As mil e uma noites, digamos —, atribui-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a psicologia desse interessante homme de lettres…
Também os livros são diferentes. Os de ficção abarcam um único argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filosó- fica invariavelmente contêm a tese e a antítese, o rigoroso pró e contra de uma doutrina, Um livro que não encerre seu contralivro é considerado incomplete.
Séculos e séculos de idealismo não deixaram de influir na realidade. Não é freqüente, nas regiões mais antigas de Tlön. a duplicação de objetos perdidos. Duas pessoas buscam um lápis; a primeira o encontra e não diz nada; a segunda encontra um segundo lápis não menos real, contudo mais ajustado a sua expectativa. Esses objetos secundários se chamam hrönir e são, ainda que de forma desairada, mais compridos. Até há pouco os hrönir eram filhos fortuitos da distração e do esquecimento. Parece mentira que sua metódica produção conte apenas cem anos, mas assim está referido no Décimo Primeiro Volume. Os primeiros intentos foram estéreis. O modus operandi, no entanto, merece ser recordado. O diretor de um dos cárceres do Estado comunicou aos presos que no antigo leito de um rio havia certos sepulcros e prometeu a liberdade aos que trouxessem um achado importante. Durante os meses que precederam à escavação, apresentaram- lhes fotografias do que iam encontrar. Essa primeira tentativa provou que a esperança e a avidez podem inibir; uma semana de trabalho com a pá e a picareta não conseguiu exumar outro hrön. salvo uma roda enferrujada, de data posterior ao experimento. Esta experiência foi mantida em segredo e depois repetida em quatro colégios. Em três, foi quase total o fracasso; no quarto (cujo diretor morreu casualmente durante as primeiras escavações), os discípulos exumaram — ou produziram — uma máscara de ouro, uma espada arcaica, duas ou três ânforas de barro e o limoso e mutilado torso de um rei com uma inscrição no peito que ainda não se logrou decifrar. Desco- briu-se assim a improcedência de testemunhas que conhecessem a natureza experimental da busca… As investigações em massa produzem objetos contraditórios; agora preferem-se os trabalhos individuais e quase improvisados. A metódica elaboração de hrönir (diz o Décimo Primeiro Volume) prestou serviços prodigiosos aos arqueólogos. Permitiu examinar e até modificar o passado, que agora não é menos plástico e menos dócil que o futuro. Fato curioso: os hrönir de segundo e de terceiro grau — os hrönir derivados do hrön de um hrön — exageram as aberrações do inicial; os de quinto, são quase uniformes; os de nono, confundem-se com os ele segundo: nos de décimo primeiro, há uma pureza de linha que os originais não têm. O processo é periódico: o hrön de décimo segundo grau já começa a decair. Mais estranho e mais puro que todo hrön é, às vezes, o ur: a coisa produzida por sugestão, o objeto eduzido pela esperança. A grande máscara de ouro que mencionei é um ilustre exemplo.
As coisas duplicam-se em Tlön; propendem simultaneamente a apagar- se e a perder as particularidades, quando se as esquece, É clássico o exemplo do umbral que perdurou enquanto o visitava um mendigo e que se perdeu de vista com sua morte, Às vezes alguns pássaros, um cavalo, salvaram as ruínas de um anfiteatro, 1940. Salto Oriental.
Pós-escrito de 1947. Reproduzo o artigo anterior tal como apareceu na Antologia da literatura fantástica, 1940, sem outro corte senão o de algumas metáforas e de uma espécie de resumo zombeteiro que se tornou frívolo. Tantas coisas se passaram desde aquela data… Limitar-me-ei a recordá-las,
Em março de 1941, foi descoberta uma carta manuscrita de Gunnar Erfjord num livro de Hinton que fora de Herbert Ashe. O envelope tinha o carimbo postal de Ouro Preto; a carta elucidava completamente o mistério de Tlön. Seu texto corrobora as hipóteses de Martinez Estrada. Em princípios do século XVII, numa noite de Lucerna ou de Londres, começou a esplêndida história. Uma sociedade secreta e benévola (que entre seus adeptos contou com Dalgarno e depois com George Berkeley) surgiu para inventar um país. No vago programa inicial figuravam os “estudos herméticos”, a filantropia e a cabala. Dessa primeira época, data o curioso livro de Andreä. Ao cabo de alguns anos de conciliábulos e de síntese prematuras, compreenderam que uma geração não bastava para articular um país. Resolveram que cada um dos mestres que a integravam escolhesse um discípulo para a continuação da obra. Essa disposição hereditária prevaleceu; depois de um hiato de dois séculos, a perseguida fraternidade ressurge na América. Por volta de 1824, em Memphis (Tennessee), um dos adeptos conversa com o ascético milionário Ezra Buckley. Este o deixa falar com certo desdém — e ri da modéstia do projeto. Diz-lhe que na América é absurdo inventar um país e propõe-lhe a invenção de um planeta. A essa gigantesca idéia acrescenta outra, filha de seu niilismo: a de manter em sigilo a empresa enorme. Circulavam, então, os vinte volumes da Encyclopædia Britannica: Buckley sugere uma enciclopédia metódica do planeta ilusório. Deixar-lhes-á suas cordilheiras auríferas, seus rios navegáveis, suas várzeas pisadas pelo touro e pelo bisão, seus negros, seus prostíbulos e seus dólares, sob uma condição: “A obra não pactuará com o impostor Jesus Cristo”, Buckley não acredita em Deus, mas quer demonstrar ao Deus inexistente que os homens mortais são capazes de conceber um mundo, Buckley é envenenado em Baton Rouge, em 1828; em 1914 a sociedade remete a seus colaboradores, que são trezentos, o volume final da Primeira Enciclopédia de Tlön. A edição é secreta: os quarenta volumes que compreende (a obra mais vasta que os homens empreenderam) seriam a base de outra mais minuciosa, não já redigida em inglês, mas em algumas das línguas de Tlön. Essa revisão de um mundo ilusório se denomina provisoriamente Orbis Tertius e um de seus modestos demiurgos foi Herbert Ashe, não sei se como agente de Gunnar Erfjord ou como adepto. Seu recebimento de um exemplar do Décimo Primeiro Volume parece favorecer a segunda hipótese. Mas, e os outros? Aí por volta de 1942, recrudesceram os fatos. Lembro-me com singular nitidez de um dos primeiros e acho que vislumbrei algo de seu caráter premonitório. Sucedeu num apartamento da rua Laprida, frente a uma clara e alta sacada, voltada para o acaso. A Princesa de Faucigny Lucinge recebera de Poitiers sua baixela de prata. Do vasto interior de um caixote rubricado de carimbos internacionais, iam saindo finas coisas imóveis: prataria de Utretch e de Paris com dura fauna heráldica, um samovar. Entre elas — com um perceptível e tênue tremor de pássaro adormecido — latejava misterio- samente uma bússola. A princesa não a reconheceu. A agulha azul indicava o norte magnético; a caixa de metal era côncava; as letras da esfera correspondiam a um dos alfabetos de Tlön. Tal foi a primeira intrusão do mundo fantástico no mundo real. Um acaso que me inquietava fez que também fosse testemunha da segunda. Aconteceu uns meses depois, na venda de um brasileiro, na Cuchilla Negra. Amorim e eu regressávamos de Santana, Uma enchente do rio Taquarembó nos obrigou a provar (e a suportar) essa rudimentar hospitalidade. O vendeiro acomodou-nos em catres rangentes numa peça ampla, entorpecida de barris e couros. Deitamo- nos, mas não nos deixou dormir até o amanhecer a bebedeira de um vizinho fantasma, que alternava injúrias inextricáveis com trechos de milongas — ou melhor, com trechos de uma só milonga. Como é de supor, atribuímos à fogosa cachaça do hospedeiro essa gritaria insistente… Pela madrugada, o homem estava morto no corredor. A aspereza da voz nos enganara: era um rapaz moço. Durante o delírio caíram-lhe do tirador algumas moedas e um cone reluzente, do diâmetro de um dado. Em vão um menino tentou recolher esse cone. Apenas um homem mal conseguiu levantá-lo. Peguei-o na palma da mão por alguns minutos: lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o cone, persistiu a opressão. Também me lembro do preciso círculo que me gravou na carne. Essa evidência de uni objeto muito pequeno e ao mesmo tempo pesadíssimo deixava a impressão desagradável de asco e de medo. Um lavrador propôs que o arremessassem à correnteza do rio: Amorim o adquiriu por alguns pesos. Ninguém sabia nada sobre o morto, exceto que “procedia da fronteira”. Esses cones pequenos e muito pesados (feitos de um metal que não é deste mundo) são imagem da divindade, em certas religiões de Tlön.
Aqui termino a parte pessoal de meu relato. O resto está na memória (quando não na esperança ou no temor) de todos os meus leitores, É suficiente para mim recordar ou mencionar os fatos subseqüentes, com mera brevidade de palavras que a côncava lembrança geral enriquecerá ou ampliará. Por volta de 1944, um investigador do jornal The American (de Nashville. Tennessee) exumou numa biblioteca de Memphis os quarenta volumes da Primeira Enciclopédia de Tlön. Até o dia de hoje se discute se esse descobrimento foi casual ou se o consentiram os detectores do ainda nebuloso Orbis Tertius, É aceitável a segunda hipótese. Alguns traços incríveis do Décimo Primeiro Volume (por exemplo, a multiplicação dos hrönir) foram eliminados ou atenuados no exemplar de Memphis; é razoável imaginar que essas supressões obedecem ao plano de exibir um mundo que não seja demasiadamente incompatível com o mundo real. A disseminação de objetos de Tlön em diversos países complementaria esse plano… O fato é que a imprensa internacional apregoou infinitamente o “achado”. Manuais, antologias. resumos, versões literais, reimpressões autorizadas e reimpressões piréticas da Obra Maior dos Homens abarrotaram e continuam abarrotando a Terra. Quase imediatamente, a realidade cedeu em mais de um ponto. O certo é que desejava ceder. Há dez anos, qualquer simetria com aparência de ordem — o materialismo dialético, o anti-semitismo, o nazismo — bastava para atrair os homens. Como não submeter-se a Tlön, à minuciosa e larga evidência de um planeta ordenado? Inútil responder que a realidade também está ordenada. Quem sabe o esteja, mas conforme leis divinas — explico: leis inumanas — que nunca percebemos completamente. Tlön será um labirinto, mas um labirinto urdido por homens, um labirinto destinado a ser decifrado pelos homens.
O contato e o hábito de Tlön desintegraram este mundo. Encantada por seu rigor, a humanidade esquece e torna a esquecer que é um rigor de enxadristas, não de anjos. Penetrou nas escolas o (conjectural) “idioma primitivo” de Tlön; já o ensino de sua história harmoniosa (e cheia de episódios comovedores) obliterou o que presidiu minha infância; já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro, do qual nada sabemos com certeza — nem, ao menos, que é falso. Foram reformadas a numismática, a farmacologia e a arqueologia. Acho que a biologia e a matemática aguardam também seu avatar… Uma dispersa dinastia de solitários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue. Se nossas pre- visões não errarem, daqui a cem anos alguém descobrirá os cem volumes da Segunda Enciclopédia de Tlön.
Então desaparecerão do planeta o inglês e o francês e o simples espa- nhol. O mundo será Tlön. Não me importo, continuo revisando, nos plácidos dias de Hotel Adrogué, uma indecisa tradução quevediana (que não tenciono publicar) do Urn Burial, de Browne.
O ano vai ser cheio de lançamentos de filmes de terror, já que muitos precisaram…
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