Os Prisioneiros de Longjumeau – Léon Bloy
Os Prisioneiros de Longjumeau
Léon Bloy
O Postilhão De Longjumeau anunciava ontem o fim deplorável dos dois Fourmi. Esse jornal, recomendado com justa razão pela abundância e qualidade de suas informações, perdia-se em conjecturas quanto às causas misteriosas do desespero que acaba de levar ao suicídio esses esposos que todos imaginavam felizes.
Casados quando muito jovens e há vinte anos em lua-de-mel, não haviam saído da cidade nem por um único dia.
Livres, pela previdência de seus criadores, de todas as preocupações com dinheiro capazes de envenenar a vida conjugal e, pelo contrário, amplamente supridos de todo o necessário para aparelhar um tipo de união sem dúvida legítima mas tão pouco conforme à necessidade de vicissitudes amorosas que em geral preocupa os instáveis humanos, eles realizam, aos olhos do mundo, o milagre da ternura perpétua.
Uma bela noite de maio, no dia seguinte à queda do sr. Thiers, o trem circular os havia trazido, juntamente com seus pais, que ali estavam para instalá-los na deliciosa propriedade que deveria abrigar sua alegria.
Os longjumelianos de coração puro contemplaram enternecidos aquele lindo casal que o veterinário sem hesitar comparou a Paulo e Virgínia.
Eles realmente estavam, naquele dia, muito bem e pareciam pálidos filhos da aristocracia.
Mestre Piécu, o tabelião mais importante do cantão, lhes comprara, às portas da cidade, um ninho de verdura que os mortos teriam invejado.
Pois é preciso admitir que o jardim fazia pensar num cemitério abandonado. Tal aspecto não lhes desagradou, sem dúvida, pois ali não introduziram, nos anos seguintes, qualquer modificação e deixaram crescer em liberdade os vegetais.
Para me servir de uma expressão por demais original do mestre Piécu, eles viveram nas nuvens, não recebendo praticamente ninguém, não por malícia ou desdém, mas simplesmente porque nunca pensaram nisso.
Além disso, teria sido preciso deixar de se abraçar por algumas horas ou alguns minutos, interromper o êxtase e, por Deus!, considerando a brevidade da vida, esses esposos extraordinários não tinham tal coragem.
Um dos maiores homens da Idade Média, mestre Jean Tauler, conta a história de um ermitão a quem um visitante inoportuno foi pedir um objeto que se encontrava em sua cela. O ermitão se viu no dever de entrar em casa para apanhar o objeto. Mas, ao entrar, esqueceu-se do que se tratava, pois a imagem das coisas exteriores não conseguia permanecer em seu espírito. Saiu então, e pediu ao visitante que lhe dissesse o que desejava. Este renovou o pedido. O ermitão voltou a entrar mas, antes de apanhar o tal objeto, a lembrança do mesmo o abandonou. Depois de diversas tentativas, foi obrigado a dizer ao inoportuno:
— Entre e procure o senhor mesmo aquilo de que precisa, pois não consigo guardar comigo a sua imagem tempo suficiente para fazer o que me pede.
O sr. e a sra. Fourmi muitas vezes me lembraram esse ermitão. Teriam dado de boa vontade tudo o que lhes fosse pedido, caso disso conseguissem se lembrar por um único instante.
Suas distrações eram famosas, falava-se delas até em Corbeil. Os dois, entretanto, não aparentavam sofrer por causa delas e a “funesta” resolução que lhes terminou a existência por todos invejada deve parecer inexplicável.
***
Uma carta já antiga desse infeliz Fourmi, que conheci antes de seu casamento, permitiu-me reconstituir, por dedução, toda a sua lamentável história.
Aqui está a carta. Veremos, talvez, que meu amigo não era nem louco nem imbecil.
“…Pela décima ou vigésima vez, caro amigo, nós te faltamos com a palavra, de forma absurda. Por maior que seja a tua paciência, imagino que devas estar cansado de nos convidar. A verdade é que desta última vez, como das anteriores, minha mulher e eu não temos desculpas. Tínhamos dito por escrito que poderias contar conosco e não tínhamos absolutamente nada para fazer Entretanto, perdemos o trem, como sempre.
Há 15 anos perdemos todos os trens e todas as conduções públicas, por mais que tentemos. É infinitamente idiota, é de um ridículo atroz, mas começo a acreditar que o mal não tem remédio. É uma espécie de fatalidade grotesca da qual somos vítimas. Não há o que fazer Já nos aconteceu de nos levantarmos às três horas da manhã ou mesmo de passar a noite sem dormir para não perder o trem das oito, por exemplo. Pois bem, meu caro, a lareira se incendiava no último instante, eu torcia o tornozelo no meio do caminho, o vestido de Julieta ficava preso em algum arbusto, nós adormecíamos no sofá da sala de espera, sem que a chegada do trem ou o chamado do encarregado nos acordasse a tempo, etc., etc. Da última vez, eu havia esquecido a carteira.
Enfim, repito, há 15 anos isso dura e sinto que aí está nosso princípio de morte. Por causa disso, como não ignoras, falhei em tudo, briguei com todo mundo, passei por um monstro de egoísmo, e minha pobre Julieta foi naturalmente envolvida nas mesmas queixas. Desde nossa chegada neste lugar maldito, faltei a 74 enterros, 12 casamentos, trinta batismos, um milhão de visitas ou atividades indispensáveis. Deixei morrer minha sogra sem tê-la revisto uma só vez, embora ela tenha estado doente quase um ano, o que nos valeu sermos privados de três quartos de sua herança, que ela furiosa nos tirou na véspera de sua morte, por um codicilo.
Eu não terminaria se me dedicasse a enumerar as faltas e desventu- ras ocasionadas por essa inacreditável circunstância de nunca termos conseguido nos afastar de Longjumeau. Para resumir numa palavra, somos prisioneiros, para sempre privados de esperança, e vemos se aproximar o momento em que essa condição de encarcerados deixará de nos ser suportável…”
Suprimo o resto, onde meu triste amigo me confiava coisas por demais íntimas para que eu as possa publicar. Mas dou a minha palavra de honra que não se tratava de um homem vulgar, que ele foi digno da admiração de sua mulher e que esses dois seres mereciam algo melhor do que acabar da forma estúpida e sórdida como acabaram.
Determinadas particularidades que peço permissão de guardar para mim me fazem pensar que o desafortunado casal era realmente vítima de uma maquinação tenebrosa do Inimigo dos homens que os conduziu, pela mão de um tabelião evidentemente infernal, àquele maléfico rincão de Longjumeau do qual nada foi capaz de arrancá-los.
Acredito realmente que eles não conseguiam fugir, que havia, em volta de sua casa, um cordão de tropas invisíveis escolhidas com cuidado para atacá- los e contra as quais nenhuma energia poderia prevalecer.
***
O sinal, para mim, de uma influência diabólica, era que os Fourmi viviam devorados pela paixão das viagens. Aqueles prisioneiros eram, por natureza, essencialmente migradores.
Antes de se unirem, tiveram sede de correr o mundo. Quando eram ainda apenas noivos, haviam sido vistos em Enghien, em Choisy-le-Roi, em Meudon, em Clamart, em Montretout. Um dia, chegaram mesmo a se aventurar até Saint-Germain.
Em Longjumeau, que lhes parecia uma ilha da Oceania, essa fúria de explorações audaciosas, de aventuras por terra e por mar, só fizera se exasperar.
Sua casa era atulhada de globos e planisférios, possuíam Atlas ingleses e Atlas germânicos. Tinham até mesmo um mapa da lua publicado em Gotha sob a direção de um pedante chamado Justus Perthes.
Quando não faziam amor, liam juntos histórias de navegadores famosos que eram o conteúdo exclusivo de sua biblioteca e não havia um diário de viagens, uma Volta do Mundo ou um Boletim de sociedade geográfica do qual não fossem assinantes. Horários de estradas de ferro e prospectos de agências marítimas choviam sem cessar sobre sua casa.
Coisa que ninguém acreditará, suas malas estavam sempre prontas. Estiveram sempre prontos para partir, fazer uma interminável viagem aos países mais distantes, mais perigosos ou mais inexplorados.
Recebi quarenta avisos anunciando sua partida iminente para Bornéu. Terra do Fogo. Nova Zelândia ou Groenlândia.
Por diversas vezes, na verdade, faltou muito pouco para que partissem. Mas afinal não partiam, nunca partiram, porque não podiam e não deviam partir. Os átomos e as moléculas se aliavam para puxá-los para trás.
Um dia , no entanto, há uns dez anos, eles decididamente acreditaram poder fugir. Haviam conseguido, contra toda esperança, se atirar num vagão de primeira classe que deveria levá-los a Versailles. Liberdade! Agora, sem dúvida, o círculo mágico se romperia.
O trem começou a andar, mas eles não se moveram. Tinham, é claro, entrado num vagão destinado a ficar na estação. Era preciso recomeçar tudo.
A única viagem à qual não faltariam era evidentemente a que acabam de fazer, coitados!… e seu temperamento que bem conheci me leva a crer que para ela se prepararam bem trêmulos.