O Jovem Goodman Brown – Nathaniel Hawthorne
O Jovem Goodman Brown
Nathaniel Hawthorne
O sol se punha quando o jovem Goodman Brown saiu à rua no povoado de Salem; depois de cruzar a soleira, porém, ele voltou a cabeça para trocar um beijo de despedida com sua jovem mulher. E Faith, como esta apropriadamente se chamava, pôs a sua própria cabecinha bonita do lado de fora, deixando o vento brincar com as fitas cor-de-rosa de sua touca, chamando Goodman Brown.
— Meu querido — sussurrou, com suavidade e certa tristeza, quando seus lábios se colaram ao ouvido dele —, eu te peço, adia tua viagem até o nascer do sol e dorme na tua cama esta noite. Uma mulher sozinha é perturbada por tais sonhos, tais pensamentos, que às vezes tem medo de si mesma. Eu te imploro, fica comigo esta noite, querido esposo, entre todas as noites do ano.
— Meu amor e minha Faith — respondeu o jovem Goodman Brown —, entre todas as noites do ano, devo passar esta longe de ti. Minha viagem, como tu a chamas, deve ser feita, ida e volta, entre este momento e o nascer do sol. Com que então, minha doce e linda esposa, já desconfias de mim, quando não temos ainda nem três meses de casados?
— Então que Deus te abençoe! — disse Faith com as fitas cor-de-rosa —, e que possas encontrar tudo em ordem quando voltares.
— Amém! — exclamou Goodman Brown. — Reza tuas orações, querida Faith, e vai para a cama ao cair da noite; nenhum mal te acontecerá.
Separaram-se então, e o rapaz seguiu seu caminho até que, prestes a dobrar a esquina junto ao templo, olhou para trás e viu a cabeça de Faith ainda a espiá-lo, com um ar tristonho apesar de suas fitas cor-de- rosa.
“Pobrezinha da Faith!”, pensou ele, o coração confrangido. “Que miserável eu sou para deixá-la com um intuito deste! E ela fala de sonhos. Tive a impressão, quando falava, de que seu rosto estava perturbado, como se um sonho a tivesse advertido do que deve ser feito esta noite. Mas não, não; essa idéia a mataria. Bem, ela é um anjo abençoado sobre a terra; e depois desta noite, só esta, eu me agarrarei nas saias dela e a seguirei para o céu.
Com essa excelente resolução para o futuro. Goodman Brown sentiu-se justificado em apressar-se em seu mau propósito. Havia tomado uma estrada lúgubre, escurecida por todas as árvores mais sombrias da floresta, que mal se separavam o bastante para deixar a trilha estreita se insinuar entre elas e voltavam a se fechar imediatamente atrás. Tudo era tão ermo quanto é possível; tamanha solidão tem a peculiaridade de deixar o viajante sem saber quem poderia estar escondido nos incontáveis troncos e nos galhos grossos sobre sua cabeça; de tal modo que, embora marche solitário, poderia estar passando entre uma multidão invisível.
“Pode haver um índio diabólico atrás de cada árvore”, disse Goodman consigo mesmo; e deu uma olhadela medrosa atrás de si, acrescentando: “E se o demônio em pessoa estivesse aqui do meu lado?”
Dobrou uma curva da estrada com a cabeça virada para trás; depois, olhando de novo para a frente, avistou a figura de um homem, em trajes sóbrios e decentes, sentado ao pé de uma velha árvore. Quando Goodman Brown se aproximou, o homem se levantou e se pôs a andar ao lado dele.
— Estás atrasado. Goodman Brown — disse. — Ouvi o relógio da Old South bater quando cruzei Boston, e isso foi há um bom quarto de hora.
— Faith me reteve uns minutos — respondeu o rapaz, com um tremor na voz causado pelo aparecimento súbito, embora não inteiramente inesperado, de seu companheiro.
Reinava agora na floresta uma penumbra cerrada, mais cerrada ainda nessa parte por onde esses dois caminhavam. Pelo que se podia discernir, o segundo viajante tinha cerca de cinqüenta anos, aparentemente a mesma posição na vida que Goodman Brown, e era bastante parecido com ele, embora talvez mais na expressão que nos traços. Ainda assim, poderiam ter sido tomados por pai e filho. No entanto, o homem mais velho, embora vestido simplesmente como o mais moço, e com maneiras igualmente simples também, tinha um ar indescritível de alguém que conhecia o mundo, e que não teria se sentido embaraçado na mesa de jantar do governador ou na corte do rei Guilherme, se fosse possível que seus negócios para ali o chamassem. Mas a única coisa nele que podia ser assinalada como extraordinária era seu cajado: parecia uma enorme cobra preta e era tão curiosamente trabalhado que se podia quase vê-lo torcer-se e remexer-se como uma serpente viva. Isso devia ser, é claro, uma ilusão de ótica, favorecida pela luz incerta.
— Vamos lá. Goodman Brown — exclamou seu companheiro —, andas num ritmo lerdo para o início de uma viagem. Pega meu cajado, se estás cansado tão depressa.
— Amigo — disse o outro, trocando seu passo lento por uma parada completa —, cumpri minha promessa de vir te encontrar aqui, mas pretendo voltar agora mesmo para o lugar de onde vim. Tenho escrúpulos de me envolver nessa história que sabes.
— Tens certeza? — respondeu o homem da serpente, sorrindo de lado. — Caminhemos um pouco, raciocinando enquanto seguimos; se eu te convencer, não voltarás. Ainda não penetramos muito na floresta.
— Penetramos demais! Demais! — exclamou o bom homem, retomando a marcha sem perceber. — Meu pai nunca entrou na mata numa missão como esta, nem seu pai antes dele. Somos uma raça de homens honestos e bons cristãos desde o tempo dos mártires; terei sido o primeiro Brown a jamais tomar este caminho e nele perseverar.
— A andar numa companhia como esta, queres dizer — observou o homem mais velho, interpretando sua pausa. — Dizes bem. Goodman Brown! Não há nenhuma família entre os puritanos que eu conheça melhor do que a tua; e isso não é pouco. Ajudei teu avô, o policial, quando ele chicoteou com tanto vigor a mulher quacre pelas ruas de Salem; e fui eu que dei a teu pai uma tora de pinheiro, acesa em minha própria lareira, para atear fogo numa aldeia indígena na guerra do rei Filipe. Foram meus bons amigos, os dois; e fizemos muitas caminhadas agradáveis por esta senda, retornando alegremente depois da meia-noite. Ficaria feliz em ser teu amigo em consideração a eles.
— Se é como dizes — respondeu Goodman Brown —, espanta-me que nunca tenham falado dessas coisas; bem, na verdade não me espanta, de vez que o menor rumor desse tipo os teria expulsado da Nova Inglaterra. Somos uma gente de oração, e também de boas obras, e não toleramos essas crueldades.
— Crueldade ou não — disse o viajante do cajado retorcido —, tenho muitos conhecidos aqui na Nova Inglaterra. Os diáconos de muitas igrejas tomaram comigo o vinho da comunhão; os conselheiros de diversas vilas elegeram-me seu presidente; e os membros da Grande Assembléia Geral são, na maioria, firmes defensores de meu interesse. Além disso, o governador e eu… Mas estes são segredos de Estado.
— Será possível? — exclamou Goodman Brown, lançando um olhar pasmado sobre seu imperturbável companheiro. — Seja como for, nada tenho a ver com o governador e o conselho; eles têm lá seus costumes e não são nenhum modelo para um simples marido como eu. Mas, caso eu fosse contigo, como poderia enfrentar o olhar daquele bom velho, nosso pastor, no povoado de Salem? Oh, a voz dele me faria tremer, no domingo e no dia do sermão.
Até esse momento o viajante mais velho ouvira com a gravidade devida; mas agora teve um acesso irreprimível de alacridade, sacudindo-se tanto que seu cajado com jeito de cobra parecia realmente contorcer-se, acompanhando-o.
— Ah! ah! ah! — gargalhava o homem sem parar; depois, controlando-se: — Ora, ora. Goodman Brown, diz o que quiseres; mas, por favor, não me mate de rir.
— Bem, então, para liquidar de vez este assunto — disse Goodman Brown, bastante irritado —, há a minha mulher. Faith. Isso lhe partiria o coraçãozinho; prefiro partir o meu.
— Ah, não — respondeu o outro —, se este é o caso vai em frente. Goodman Brown. Nem por vinte velhas como essa que segue mancando à nossa frente eu desejaria que Faith sofresse algum mal.
Enquanto falava, apontou seu cajado para uma figura de mulher adiante na trilha e Goodman Brown reconheceu nela uma senhora muito piedosa e exemplar, que lhe ensinara seu catecismo na meninice e ainda era sua conselheira espiritual e moral, juntamente com o pastor e o diácono Gookin.
— É espantoso, verdadeiramente, que Goody Cloyse esteja tão enfiada na floresta ao anoitecer — disse. — Mas com tua licença, amigo, vou tomar um atalho pela mata até deixarmos esta cristã para trás. Como não te conhece, ela poderia perguntar quem está comigo e aonde eu vou.
— Que seja — disse seu companheiro de viagem. — Vai pela mata e deixa-me seguir pela trilha.
O rapaz tomou então um desvio, mas tratou de observar seu companheiro, que avançou tranqüilamente pela estrada até chegar à distância de um cajado da velha dama. Ela, enquanto isso, avançava o melhor que podia, com singular velocidade para uma mulher tão idosa, murmurando umas palavras indistintas — uma prece, sem dúvida. O viajante esticou seu cajado e tocou- lhe o pescoço murcho com o que parecia a cauda da serpente.
— O diabo! — gritou a piedosa anciã.
— Então Goody Cloyse reconhece seu velho amigo? — observou o viajante, pondo-se diante dela e apoiando-se em seu bastão serpeante.
— Ora, com a breca! É mesmo vossa reverência? — exclamou a boa senhora. — Sim, é mesmo, e na própria imagem de meu velho amigo. Goodman Brown, o avô daquele moço tolo que anda por aí. Mas… vossa reverência acredita?… meu cabo de vassoura desapareceu estranhamente; foi roubado, desconfio, por aquela bruxa não enforcada. Goody Cory e logo quando eu estava toda besuntada com suco de aipo, cinco-em-rama e capuz- de-frade…
— Misturados com farinha fina e a gordura de um bebê recém-nascido — disse a imagem do velho Goodman Brown.
— Ah, vossa reverência conhece a receita — exclamou a velha dama, com uma risadinha estridente. — Assim, como eu ia dizendo, estando prontinha para a reunião e sem nenhum cavalo para montar, resolvi ir a pé; pois me contaram que um belo rapaz será admitido à comunhão esta noite. Mas agora, se vossa reverência tiver a bondade de me emprestar o braço, estaremos lá num piscar de olhos.
— Isso não será possível — respondeu seu amigo. — Não posso te ceder meu braço. Goody Cloyse; mas cá está meu cajado, se quiseres.
Com estas palavras, jogou-o aos pés dela, onde talvez tenha ganhado vida, sendo um dos bastões que seu dono havia outrora emprestado aos magos do Egito. Deste fato, porém. Goodman Brown não pôde tomar conhecimento. Ele havia levantado os olhos, assombrado, e, ao baixá-los de novo, não viu nem Goody Cloyse nem o cajado serpentino; viu apenas seu companheiro de viagem, a esperá-lo sozinho e tão calmamente como se nada tivesse acontecido.
— Essa velha me ensinou o catecismo — disse o rapaz; e havia um mundo de significação nesse simples comentário.
Retomaram a caminhada, enquanto o mais velho exortava o companheiro a se apressar e perseverar no caminho, discutindo com tanto talento que seus argumentos pareciam emanados do peito do próprio ouvinte, em vez de sugeridos por ele. Em certa altura, arrancou um galho de bordo para servir de bordão e pôs-se a limpá-lo dos rebentos e ramos, molhados com o orvalho do anoitecer. Mal seus dedos os tocavam, eles se tornavam estranhamente murchos e secos, como se tivessem passado uma semana ao sol. Assim prosseguiu a dupla, num bom ritmo, até que de repente, numa depressão escura da estrada. Goodman Brown se sentou num cepo e se recusou a ir adiante.
— Amigo — disse, inflexível —, minha decisão está tomada. Não darei nem mais um passo nesta missão. Não me importa que uma velha miserável escolha ir para o diabo quando eu pensava que estava indo para o céu: seria isso razão para eu deixar minha querida Faith e ir atrás dela?
— Pensarás melhor sobre isso logo mais — disse seu conhecido, sere- namente. — Senta aqui e descansa um pouco; quando sentires vontade de voltar a andar, aqui está meu cajado para te ajudar.
Sem dizer mais nada, jogou-lhe o galho de bordo e desapareceu da vista dele tão rapidamente como se tivesse sido tragado pela escuridão cada vez mais espessa. O rapaz ficou alguns momentos sentado à beira da estrada, congratulando-se enormemente, e pensando que teria a consciência leve ao se encontrar com o pastor em sua caminhada matinal, não precisando se esquivar dos olhos do velho diácono Gookin. E em como seu sono seria sossegado naquela noite mesmo, que deveria ter sido passada de maneira tão depravada, mas que agora transcorreria tão pura e doce nos braços de Faith! Em meio a essas agradáveis e louváveis meditações. Goodman Brown ouviu um tropel de cavalos na estrada e achou aconselhável esconder-se na orla da floresta, consciente do propósito condenável que o levara até ali, embora nesse momento, felizmente, lhe estivesse dando as costas.
Chegaram-lhe o ruído dos cascos e as vozes dos cavaleiros, duas vozes graves e idosas, a conversar calmamente enquanto se aproximavam. Esses sons misturados pareciam vir da estrada, a poucas jardas do esconderijo do rapaz; mas, sem dúvida por causa da profunda escuridão daquele ponto particular, nem os cavaleiros nem seus corcéis eram visíveis. Embora suas figuras roçassem as pequenas moitas à beira do caminho, pareceram não interceptar, sequer por um instante, a luz pálida da faixa de céu estrelado contra a qual deviam estar passando. Goodman Brown ora ficava de cócoras, ora se erguia na ponta dos pés, afastando os galhos e esticando a cabeça o mais que ousava, sem discernir uma sombra que fosse. Isso o exasperava ainda mais porque poderia ter jurado, fosse tal coisa possível, estar reconhecendo as vozes do pastor e do diácono Gookin, a avançar num trote lento, como costumavam fazer quando s e dirigiam para uma ordenação ou um concílio eclesiástico. Enquanto ainda podiam ser ouvidos, um dos cavaleiros parou para arrancar uma vara.
— Se me fosse dado escolher, reverendo — disse a voz que parecia do diácono —, preferiria perder um jantar de ordenação à reunião desta noite. Ouvi dizer que membros de nossa comunidade virão de Falmouth e de mais longe, e outros de Connecticut e Rhode Island. além de vários xamãs, que, a sua maneira, conhecem quase tanta diabrura quanto o melhor nós. Além disso, uma formosa jovem será admitida à comunhão.
— Excelente, diácono Gookin! — respondeu a voz solene e idosa do pastor. — Instiga teu cavalo, ou chegaremos atrasados. Nada pode ser feito, como sabes, antes da minha chegada.
Os cacos retiniram de novo; e as vozes, falando tão estranhamente no ar vazio, avançaram pela floresta, onde nenhuma igreja jamais se reunira e nenhum cristão solitário rezara. Para onde, então, poderiam estar se dirigindo aqueles santos homens, tão mergulhados naqueles ermos pagos? O jovem Goodman Brown agarrou-se a uma árvore, sentindo-se prestes a desabar no chão, sem sentidos, prostrado pela profunda náusea que lhe revirava as tripas. Olhou para o céu, duvidando de que realmente houvesse um céu acima dele. Contudo lá estava a abóbada azul, e as estrelas brilhando.
— Com Deus no céu e Faith na terra, ainda haverei de permanecer firme contra o demônio! — exclamou Goodman Brown.
Ele ainda olhava para cima, contemplando a profunda abóbada do firmamento, e erguera as mãos para orar, quando uma nuvem, embora nenhum vento soprasse, cruzou rapidamente o zênite e escondeu as estrelas cintilantes. O céu azul continuava visível, exceto bem em cima dele, onde essa massa negra de nuvem deslizava célere para o norte. Pelo ar, e como que vindo das profundezas da nuvem, chegou-lhe um som confuso e indistinto de vozes. Num momento o ouvinte imaginou que podia distinguir a entonação da gente de seu povoado, homens e mulheres, tanto piedosos quanto ímpios; encontrara-se com muitos deles na mesa de comunhão e vira outros embebedarem-se na taberna. No momento seguinte os sons eram tão indistintos que ele duvidou ter ouvido alguma coisa senão o murmúrio da velha floresta a sussurrar no ar parado. Depois veio uma onda mais forte daqueles tons conhecidos, ouvidos diariamente à luz do sol no povoado de Salem, mas nunca até agora vindo de uma nuvem da noite. Fez-se ouvir a voz de uma jovem entoando lamentos, embora com um sofrimento incerto, e implorando um favor que lamentaria talvez obter; e toda a multidão invisível, de santos e pecadores, parecia estimulá-la.
— Faith! — gritou Goodman Brown, numa voz de agonia e desespero; e os ecos da floresta zombaram dele, gritando “Faith! Faith!” como se desgraçados aturdidos estivessem à procura dela por toda a mata.
O grito de dor, raiva e terror ainda perfurava a noite quando o infeliz marido conteve o fôlego, aguardando uma resposta. Houve um grito, imediatamente abafado por um murmúrio mais alto de vozes, que foi desaparecendo numa risada distante à medida que a nuvem escura deslizava, deixando o céu claro e silente sobre Goodman Brown. Alguma coisa, porém, esvoaçou levemente pelo ar e prendeu-se no galho de uma árvore. O rapaz pegou-a, e contemplou uma fita cor-de-rosa.
— Minha Faith se foi! — gritou, depois de um momento de estupor. — Não há nada de bom sobre a terra; o pecado é só uma palavra. Vem, demônio; pois a ti pertence este mundo.
E, tão enlouquecido de desespero que riu alto e longamente. Goodman Brown pegou seu cajado e pôs-se de novo a caminho, tão depressa que mais parecia voar pela trilha da floresta que andar ou correr. A senda foi ficando mais tortuosa e menos bem traçada, e por fim desapareceu, deixando-o no coração da floresta escura, a avançar ainda impetuosamente, com o instinto que guia o homem mortal para o mal. A floresta inteira estava povoada de sons assustadores — o estalar das árvores, o uivo de animais selvagens e o grito de índios; enquanto o vento às vezes soava como o dobrar do sino distante de uma igreja, e às vezes rugia em torno do viajante, como se toda a Natureza zombasse dele. Mas ele próprio era o principal horror da cena; os demais não o acovardavam.
— Ah! ah! ah! — rugia Goodman Brown quando o vento ria dele. — Vamos ver quem ri mais alto. Não me apavorais com vossas diabruras. Vem, bruxa, vem, feiticeiro, vem, xamã, vem tu mesmo, demônio, que aqui vai Goodman Brown. Tendes tanta razão para temê-lo quanto ele a vós.
Na verdade, em toda a floresta assombrada, não podia haver nada mais medonho que a figura de Goodman Brown. Ele voava por entre os pinheiros negros, brandindo seu cajado com gestos frenéticos, ora obedecendo a uma inspiração de horrenda blasfêmia, ora gargalhando com tal ímpeto que punha todos os ecos da floresta a rir como demônios a sua volta. Satanás na sua própria forma é menos hediondo que o esbravejar no peito de um homem. Assim foi o endemoninhado correndo pelo seu percurso, até que viu diante de si, tremulando entre as árvores, uma luz vermelha, como quando se ateia fogo aos troncos e galhos abatidos de uma clareira; as sinistras labaredas se elevando contra o céu na hora da meia-noite. Deteve-se, numa calmaria da tempestade que o impelira, e ouviu avolumar-se o que parecia ser um hino, ressoando solenemente à distância, engrossado por muitas vozes. Ele conhecia a canção; era entoada muitas vezes pelo coro no templo do povoado. Os versos extinguiram-se tristemente e foram prolongados por um coro, não de vozes humanas, mas de todos os sons da mata noturnal retumbando juntos em horrível harmonia. Goodman Brown gritou, mas seu grito se perdeu no grito do deserto e nem seu próprio ouvido o ouviu.
No intervalo de silêncio ele avançou furtivamente, até que a luz o ofuscou. Na extremidade de uma clareira, cingida pela muralha escura da floresta, erguia-se uma pedra que, em sua aparência rude, natural, tinha alguma semelhança com um altar ou um púlpito; era cercada por quatro resplandecentes pinheiros, seus topos em chamas, seus troncos intactos como velas num culto noturno. Toda a massa de folhagem que crescia acima da pedra estava em chamas, com labaredas que se erguiam altas na noite e iluminavam intermitentemente todo o campo. Cada galho pendente e festão de folhas ardia. Enquanto a luz vermelha se acendia e apagava, uma numerosa congregação alternadamente luzia e desaparecia na sombra, e de novo brotava, como que das trevas, povoando de repente o coração das matas solitárias.
— Uma gente grave, de roupas escuras — disse Goodman Brown.
E realmente era assim. Em meio às pessoas, indo e vindo entre a escuridão e o esplendor, apareceram rostos que seriam vistos no dia seguinte no conselho da província, e outros que, domingo após domingo, olhavam devotamente para o céu ou, benignamente, dos mais santos púlpitos da região, para os bancos apinhados dos templos. Alguns afirmam que a senhora do governador estava lá. Pelo menos lá estavam damas de alto coturno muito conhecidas dela, e esposas de honrados maridos, e viúvas, uma chusma delas, e velhas donzelas, todas de excelente reputação, e belas mocinhas, a tremer de medo que suas mães as descobrissem. Ou os lampejos súbitos de luz iluminando o campo escuro estontearam Goodman Brown, ou ele reconheceu muitos membros da igreja do povoado de Salem, famosos por sua especial santidade. O bom diácono Gookin havia chegado, e aguardava junto daquele venerável santo, seu reverenciado pastor. Mas, misturando-se irreverentemente com essas pessoas graves, bem conceituadas e piedosas, aqueles anciãos da igreja, aquelas damas castas e virgens inocentes, havia homens de vida dissoluta e mulheres de má fama, desgraçados entregues a todos os vícios vis e obscenos, e até suspeitos de crimes horríveis. Era estranho que os bons não se esquivassem dos depravados, nem os pecadores se envergonhassem dos santos. Espalhados também entre seus inimigos caras-pálidas, estavam os sacerdotes índios, ou xamãs, que muitas vezes haviam amedrontado sua floresta nativa com encantamentos mais hediondos que qualquer outro que a feitiçaria inglesa conhecesse.
— Mas onde está Faith? — pensou Goodman Brown; e, à medida que a esperança lhe invadia o coração, tremeu.
Uma estrofe do hino elevou-se, uma toada lenta e plangente, como o amor piedoso, mas acompanhada de palavras que expressavam tudo o que nossa natureza pode conceber de pecaminoso e insinuavam enigmaticamente muito mais. A sabedoria dos demônios é insondável para meros mortais. Verso após verso foi cantado; e o coro dos ermos continuou a se avolumar entre um e outro como o tom mais grave de um órgão poderoso; com o ribombo final desse hino pavoroso, surgiu um som, como se do bramir do vento, do ímpeto das torrentes e do uivo das feras, e todas as outras vozes dos ermos dissonantes se misturaram e se harmonizaram com a voz do homem culpado em homenagem ao príncipe de todas as coisas. Os quatro pinheiros ardentes lançaram uma chama mais alta, e revelaram obscuramente formas e semblantes de horror nas espirais de fumaça sobre a ímpia assembléia. No mesmo instante o fogo sobre a pedra projetou-se e formou uma abóbada rubra e incandescente acima de sua base, onde apareceu então uma figura. Havia, aliás, diga-se com reverência, uma semelhança não desprezível, tanto em garbo quanto em maneiras, entre ela e alguns graves sacerdotes das igrejas da Nova Inglaterra.
— Trazei os convertidos! — bradou uma voz que ecoou através do campo e ressoou na floresta.
A essas palavras. Goodman Brown saiu da sombra das árvores e aproximou-se da congregação, com que, malgrado seu, sentiu-se irmanado pela afinidade dela com tudo que era depravado em seu coração. Poderia ter quase jurado que a figura de seu próprio finado pai, a olhar para baixo de uma espiral de fumaça, lhe fez sinal para avançar, enquanto uma mulher, os traços confusos pelo desespero, lhe fez um aceno com a mão, instando-o a recuar. Seria sua mãe? Mas ele não foi capaz de recuar um passo, nem de resistir, sequer em pensamento, quando o pastor e o bom diácono Gookin o agarraram pelos braços e o levaram para a pedra chamejante. Para lá rumava também a forma esbelta de uma mulher de rosto velado, conduzida entre Goody Cloyse, aquela piedosa professora de catecismo, e Martha Carrier, que recebera a promessa do diabo de ser rainha do inferno. Uma bruxa celerada, é o que ela era. E lá estavam os prosélitos, sob a canópia de fogo.
— Sede bem-vindos, meus filhos — disse a lúgubre figura —, à comunhão da vossa raça. Encontrastes, ainda tão jovens, vossa natureza e vosso destino. Meus filhos, olhai para trás!
Eles se viraram; e lampejando, como se numa lâmina de fogo, os adoradores de Satã apareceram; um sorriso de boas-vindas brilhava soturnamente em cada rosto.
— Ali estão — continuou a figura negra — todos que reverenciastes desde a infância. Vós os tínheis na conta de mais santos que vós mesmos, e vos envergonháveis de vosso próprio pecado, comparando-o com suas vidas de virtude e oração na esperança do céu. No entanto, cá estão todos eles em meu culto. Esta noite vos será permitido conhecer seus atos secretos: como anciãos de barba encanecida da igreja cochicharam palavras libertinas para as jovens criadas de suas casas; quantas mulheres, ansiosas por usar o luto das viúvas, deram uma bebida aos maridos na hora de ir para a cama e os deixaram dormir seu último sono em seu peito; quantos rapazes imberbes se apressaram em herdar as fortunas dos pais; quantas lindas donzelas — não ruborizais, minhas queridas — cavaram pequenas sepulturas no jardim e me convidaram, a única testemunha do funeral de um bebê. Graças à propensão de vossos corações humanos para o pecado, farejais todos os lugares — na igreja, no quarto, na rua, no campo ou na floresta — onde se cometeram crimes, e exultareis ao ver a terra inteira como uma nódoa de culpa, uma única e enorme mancha de sangue. Muito mais que isto. A vós será dado penetrar, em cada peito, o mistério profundo do pecado, a fonte de todas as artes perversas, que fornece, inesgotavelmente, mais impulsos perversos do que o poder humano — do que meu poder, em seu limite — pode manifestar em atos. E agora, meus filhos, olhais uns para os outros.
Eles assim fizeram; e, ao clarão das tochas acesas no inferno, o desgraçado homem contemplou sua Faith, e a mulher seu marido, tremendo perante aquele ímpio altar.
— Vede, aí estais vós, meus filhos — disse a figura num tom grave e solene, quase triste em sua desesperante hediondez, como se sua natureza outrora angélica pudesse ainda deplorar nossa miserável raça. — Confiando no coração um do outro, havíeis ainda esperado que a virtude não fosse apenas um sonho. Agora estais decepcionados. Má é a natureza da humanidade. O mal deve ser vossa única felicidade. Sede bem-vindos novamente, meus filhos, à comunhão de vossa raça.
— Bem-vindos — repetiram os adoradores de Satã, num grito de desespero e triunfo.
E ali estavam eles, o único par, ao que parecia, que ainda hesitava à beira da maldade neste mundo sombrio. Havia uma bacia cavada, naturalmente, na pedra. Conteria água, avermelhada pela luz sinistra? Ou seria sangue? Ou, quem sabe, um fogo líquido? Ali a forma do diabo mergulhou a mão e preparou-se para depositar a marca do batismo nas frontes deles, para que pudessem partilhar do mistério do pecado, mais conscientes da culpa secreta de outros, tanto em atos como em pensamentos, do que podiam ser agora das suas próprias. O marido lançou um olhar sobre sua pálida esposa, e Faith sobre ele. Que misérias imundas seu próximo olhar mostraria para cada um deles, que estremeceriam tanto pelo que estariam revelando quanto pelo que estariam vendo!
— Faith! Faith! — gritou o marido. — Levanta os olhos para o céu, e resiste ao demônio.
Se Faith obedeceu, ele não soube. Mal dissera essas palavras, encontrou-se em meio à noite calma e à solidão, ouvindo o arfar do vento que esmorecia tristemente através da floresta. Remexeu-se contra a pedra e sentiu-a fria e úmida; enquanto um galho pendente, que havia sido todo queimado, borrifava sua face com o mais frio orvalho.
Na manhã seguinte o jovem Goodman Brown entrou lentamente na rua do povoado de Salem, olhando a sua volta como um homem aturdido. O velho e bom pastor, que fazia uma caminhada pelo cemitério para ganhar apetite para o desjejum e meditar seu sermão, concedeu-lhe uma bênção quando passou. Ele se esquivou do venerável santo como de um anátema. O velho diácono Gookin fazia suas preces em casa e as palavras sagradas que pronunciava eram ouvidas pela janela aberta. “Para que Deus está rezando o feiticeiro?”, disse Goodman Brown. Goody Cloyse, aquela excelente cristã, tomava os primeiros raios de sol debruçada em sua própria janela, catequizando uma garotinha que lhe levara um quartilho do leite da manhã. Goodman Brown arrancou a criança dali como se a livrasse das garras do próprio demônio. Ao dobrar a esquina junto ao templo, avistou a cabeça de Faith, com as fitas cor-de-rosa, a olhar ansiosamente. Ao vê-lo, ela explodiu em tal alegria que saiu aos pulos pela rua e quase beijou o marido na frente do povoado inteiro. Mas Goodman Brown encarou-a severa e tristemente, e seguiu adiante sem um cumprimento.
Havia Goodman Brown adormecido na floresta e apenas sonhado um sonho desvairado de uma reunião de bruxos?
Acredita nisso se quiseres; mas, ai! Foi um sonho de mau agouro para o jovem Goodman Brown. A partir da noite desse sonho terrível, ele se tornou um homem severo, macambúzio, cismarento e desconfiado, se não desesperado. No domingo, quando a congregação cantava um hino sagrado, não conseguia escutar porque um hino de pecado lhe tomava de assalto os ouvidos, ruidosamente, e abafava o canto abençoado. Quando o pastor falava do púlpito, com energia e apaixonada eloqüência, a mão sobre a Bíblia aberta, das sagradas verdades de nossa religião, das vidas e das mortes triunfantes dos santos, da futura bem-aventurança ou da miséria inexprimível, nesses momentos Goodman Brown empalidecia, temendo que o teto desabasse com estrondo sobre o velho blasfemo e seus ouvintes. Muitas vezes, acordando de repente à meia-noite, fugia do abraço de Faith; e de manhã ou à noite, quando a família se ajoelhava para rezar, ele fechava a cara, resmungava, olhava carrancudo para a mulher, e se afastava. E depois que viveu muitos anos, e foi levado para sua sepultura como um cadáver encanecido, seguido por Faith, uma mulher idosa, e filhos, e netos, uma bonita procissão, ao lado de não poucos vizinhos, não se entalhou em sua lápide nenhum versículo de esperança, porque morreu na escuridão.