Na Cabine do Navio – Marion Crawford

Na Cabine do Navio

Marion Crawford

I

Alguém perguntou onde estavam os charutos. Tínhamos falado por um bom tempo e a conversa começava a definhar; a fumaça de tabaco impregnara as cortinas pesadas, o vinho embebera os cérebros, que começavam a ficar pesados, e já estava perfeitamente evidente que, a menos que alguém fizesse algo para estimular nossos lerdos espíritos, aquela reunião logo chegaria a sua conclusão natural, e nós, os convidados, imediatamente iríamos para casa e com toda certeza dormiríamos. Ninguém dissera nada de muito notável; podia ser que ninguém tivesse nada de notável a dizer. Jones nos contara todos os detalhes de sua última caçada em Yorkshire. O sr. Tompkins, de Boston, explicara longamente os princípios de trabalho que, através de uma manutenção devida e cuidadosa, fizeram com que a Estrada de Ferro de Atchinson. Topeka e Santa Fé não apenas estendesse seu território, aumentasse sua influência departamental e transportasse gado sem deixá-lo morrer de fome antes do dia da entrega, como também conseguiram, durante anos, desapontar aqueles passageiros que compravam seus bilhetes na ilusão de que a mencionada empresa fosse de fato capaz de transportar vidas hu- manas sem as destruir. Signor Tombola tentara nos persuadir, com argu- mentos que não nos foi difícil refutar, de que a unidade de seu país de modo algum se assemelhava ao torpedo moderno, cuidadosamente planejado e construído com todas as técnicas dos maiores arsenais europeus, mas, quando concluído, fadado a ser entregue por mãos ineficazes numa região onde devia indubitavelmente explodir, sem ser visto, ouvido ou temido, dentro dos imensuráveis refugos do caos político.

É desnecessário entrar em maiores detalhes. A conversa assumira proporções que teriam entediado Prometeu acorrentado a sua rocha, distraído Tântalos e impelido Íxion a buscar relaxamento nos simples, porém instrutivos, diálogos de Herr Ollendorff, em vez de se submeter a um mal maior que era escutar nossa conversa. Fazia horas que estávamos sentados à mesa; estávamos entediados, estávamos cansados, e ninguém dava sinais de ir embora.

Alguém perguntou onde estavam os charutos. Instintivamente, todos olhamos para o dono daquela voz. Brisbane era um homem de 35 anos de idade, notável devido àqueles dons que atraem especialmente a atenção dos seus semelhantes. Era um homem forte. As proporções externas de sua figura não apresentavam nada de extraordinário à primeira vista, embora sua estatura fosse superior à média. Tinha um pouco mais de 1,80m e ombros razoavelmente largos; não parecia corpulento, mas, por outro lado, certamente não era magro. Sua cabeça pequena era sustentada por um pescoço vigoroso, rijo; suas mãos musculosas e enormes pareciam possuir a capacidade peculiar de quebrar nozes sem o auxílio de um quebra-nozes e, observando-o de perfil, era impossível não reparar na largura de seus braços e na incomum espessura de seu peito. Era um desses homens normalmente considerados como falazes nas conversas masculinas; isso quer dizer que, embora ele parecesse extremamente forte, na realidade era muito mais forte do que parecia. Sobre suas feições, pouco haveria a dizer: cabeça pequena, cabelos lisos, olhos azuis, nariz largo, bigode curto e queixo quadrado. Todo mundo conhece Brisbane, e quando ele pediu um charuto todos olharam para ele.

— É uma questão muito curiosa — disse Brisbane.

Houve um silêncio. A voz de Brisbane não era alta, mas possuía a qualidade peculiar de penetrar no meio da conversa coletiva e cortá-la como uma faca. Todos escutaram. Brisbane, percebendo que havia atraído a atenção geral, acendeu seu charuto com imensa serenidade.

— Muito curiosa — prosseguiu — essa história de fantasmas. As pessoas estão sempre perguntando se alguém viu um fantasma. Eu vi.

— Bobagem! Quem? Você? Você não está falando sério, Brisbane. Um homem da sua inteligência!

Um coro de exclamações reagiu à afirmação inesperada de Brisbane. Todos pediram charuto, e Stubbs, o mordomo, apareceu de repente das profundezas de lugar nenhum com uma nova garrafa de champanhe. A situação estava salva; Brisbane ia contar uma história.

— Sou um velho homem do mar — disse Brisbane — e, como ainda atravesso o Atlântico com freqüência, tenho minhas predileções. A maior parte dos homens tem a sua. Já vi um sujeito esperando num bar da Broadway durante 45 minutos por um determinado carro que ele preferia. Acredito que o dono do bar ganhou pelo menos um terço de sua renda por conta da predileção daquele homem. Eu tenho o hábito de esperar por certos navios, quando sou obrigado a atravessar o oceano. Pode tratar-se de um preconceito, porém nunca me enganei, senão uma única vez na minha vida. Lembro-me muito bem; foi numa manhã quente de junho, e as autoridades da alfândega, que estavam por ali aguardando um navio a vapor que se aproximava após seu período de quarentena, exibiam uma aparência particularmente confusa e preocupada. Eu não levava muita bagagem, nunca levo. Misturei-me à multidão de passageiros, carregadores e sujeitos intrometidos, vestidos com casacos azuis e botões de bronze, que pareciam brotar feito cogumelos do convés de um navio atracado, para importunar com seus préstimos desnecessários os passageiros independentes. Tenho observado freqüentemente com certo interesse a manobra espontânea desses indivíduos. Nunca estão lá quando chegamos; cinco minutos após o timoneiro gritar `Vamos em frente!’, eles, ou pelo menos seus casacos azuis de botões de bronze, desaparecem completamente do convés e do passadiço, como se tivessem sido fechados em seus armários, o que a tradição atribui a Davy Jones. Mas no momento da partida, lá estão eles, perfeitamente barbeados, com seus casacos azuis, ávidos por uma gratificação. Subi a bordo rapidamente. O Kamtschatka era um dos meus navios favoritos. Eu disse era, porque ele decididamente não o é mais. Não consigo conceber qualquer razão capaz de me seduzir a fazer uma outra viagem nele. Sim, eu sei o que vocês vão dizer. É um navio excepcionalmente limpo nas acomodações de popa, tem a proa alta o bastante para manter-se seco, e os leitos inferiores são em sua maioria duplos. A embarcação possui muitas vantagens, mas não atravessarei mais o oceano com ela. Desculpem-me a digressão. Subi a bordo. Chamei o comissário de serviço, cujo nariz vermelho e costeletas ainda mais vermelhas eram igualmente familiares para mim.

“— 105, leito inferior — disse eu, naquele tom indiferente peculiar aos homens para os quais uma travessia do Atlântico ou um uísque no Delmonico’s, no centro da cidade, são a mesma coisa.

“O comissário apanhou minha mala, o sobretudo e a manta de viagem. Nunca me esquecerei da expressão em seu rosto. Não que tenha ficado pálido. Sustentam os mais eminentes sacerdotes que nem os milagres são capazes de alterar o curso da natureza. Não hesito em dizer que ele não empalideceu; mas, pela sua expressão, julguei que estivesse a ponto de se debulhar em lágrimas, espirrar ou deixar minha mala cair no chão. Como esta continha duas garrafas de um velho e excelente xerez dadas a mim pelo meu grande amigo Snigginson van Pickyns, fiquei extremamente nervoso. Mas o comissário não fez nada disso.

“— Bem eu vou… — disse ele em voz baixa, indicando o caminho.

“Achei que meu Hermes, à medida que me conduzia a regiões inferiores do barco, tivesse bebido um trago, mas não falei nada e segui seus passos. O 105 ficava a bombordo, próximo à popa. Não havia nada de extraordinário no camarote. O leito inferior, como a maioria deles no Kamtschatka, era de casal. Havia muito espaço; havia um lavatório comum, concebido para transmitir uma idéia de luxo à mente de um índio norte-americano; havia os habituais e ineficientes bagageiros em madeira marrom, dentro dos quais é mais fácil manipular um grande guarda-chuva do que uma escova de dentes comum. Sobre o colchão repulsivo estavam cuidadosamente dobrados aqueles cobertores, que um grande humorista moderno apropriadamente comparou a frias panquecas de trigo. A questão das toalhas havia sido deixada inteiramente à imaginação. Os decantadores de vidro estavam cheios de um líquido transparente levemente tingido de marrom, mas do interior deles um odor menos fraco, porém não mais agradável, ascendia às narinas, como uma reminiscência distante e enjoativa de máquinas lubrificadas. Cortinas de cores tristes escondiam parcialmente o leito superior. A luz vaporosa de um dia de junho lançava uma vaga claridade sobre aquele pequeno cenário desolado. Argh! Como detestei aquele camarote!

“O comissário largou meus pertences e olhou para mim, como se quisesse ir embora — provavelmente em busca de outros passageiros e outras gratificações. É sempre uma boa estratégia começar bem a relação com esses funcionários e, de forma correspondente, dei-lhe algumas moedas.

“— Vou tentar deixá-lo tão confortável quanto for possível — observou ele, enfiando as moedas no bolso. Entretanto, havia uma entonação dúbia em sua voz que me surpreendeu. Possivelmente, sua tabela de gratificação havia aumentado e ele não ficara satisfeito; mas de um modo geral eu estava inclinado a pensar que, como o próprio teria se exprimido, ele era `bom de copo’. Eu estava errado, porém, e fui injusto com ele.”

II

“Nada especialmente digno de menção ocorreu durante aquele dia. Deixamos o cais pontualmente e foi muito agradável iniciar a viagem, pois o tempo estava quente e abafado, e o movimento do navio produziu uma brisa refrescante. Todos sabem como é o primeiro dia no mar. As pessoas andam pelo convés, se observam umas as outras e, ocasionalmente, encontram conhecidos que não sabiam que estivessem também a bordo. Existe aquela incerteza habitual sobre se a comida é boa, ruim ou indiferente, até que as duas primeiras refeições dissipem as dúvidas; existe a incerteza habitual em relação às condições meteorológicas, até que o navio tenha passado pela Ilha do Fogo. No começo, as mesas ficam apinhadas e então, repentinamente, esvaziam. Passageiros pálidos se levantam de suas cadeiras e se precipitam na direção da porta, e os velhos marujos respiram mais livremente quando o vizinho enjoado se afasta correndo, deixando bastante espaço para os cotovelos e o controle irrestrito do pote de mostarda.

“Uma travessia do Atlântico se parece muito com as outras, e nós que viajamos com freqüência não o fazemos mais pela novidade. Baleias e icebergs são de fato sempre motivo de interesse, mas, afinal de contas, uma baleia é igualzinha à outra, e raramente vemos um iceberg de perto. Para a maioria de nós, o momento mais prazeroso do dia, a bordo de um navio a vapor, é quando acabamos de dar nossa última volta no convés, fumar o último charuto e, tendo conseguido acumular um pouco de cansaço, sentimo- nos livres para ir para cama com a consciência tranqüila. Naquela primeira noite de viagem, eu me sentia particularmente preguiçoso, e fui me deitar no camarote 105 bem mais cedo do que de costume. Quando entrei, surpreendeu-me constatar que eu tinha um companheiro de cabine. Uma mala muito semelhante a minha encontrava-se no canto oposto e, no leito superior, havia sido colocada uma manta impecavelmente dobrada, com uma bengala e um guarda-chuva. Eu esperava ficar sozinho e aquilo me decepcionou; mas me perguntei quem seria a pessoa com quem dividiria o camarote e decidi aguardar para ver de quem se tratava.

“Fazia pouco tempo que eu estava deitado quando ele entrou. Tratava-se, até onde pude discernir, de um homem muito alto, muito magro e muito pálido, com cabelos e costeletas ruivas e olhos cinza, inexpressivos. Envolvia- o, pareceu-me, um ar bastante suspeito; o tipo de homem que podemos ver em Wall Street, sem sermos capazes de dizer precisamente o que está fazendo ali — o tipo de pessoa que freqüenta o Café Anglais, que sempre parece estar só e que bebe champanhe; podemos encontrá-lo num hipódromo, mas ele não parece tampouco estar fazendo alguma coisa ali. Vestia-se de um modo exagerado — um pouco excêntrico. Existem sempre três ou quatro dessa espécie em todo navio que cruza o oceano. Concluí que não fazia questão de conhecê-lo, e adormeci dizendo a mim mesmo que estudaria seus hábitos de modo a evitá-lo. Se ele se levantasse cedo, eu me levantaria tarde; se ele fosse para cama tarde, eu iria mais cedo. Não estava disposto a travar conhecimento com ele. Uma vez que somos apresentados a essas pessoas elas não nos largam mais. Pobre sujeito! Eu não precisava ter-me dado tanto trabalho para chegar àquelas conclusões sobre ele, pois nunca mais voltei a vê-lo após aquela primeira noite no 105.

“Eu dormia profundamente quando fui despertado, de forma brusca, por um barulho alarmante. A julgar pelo som, meu companheiro de camarote devia ter saltado de seu leito superior para o chão. Ouvi-o tateando o trinco da porta, que se abriu quase no mesmo instante, e então ouvi suas passadas à medida que ele corria a toda velocidade pelo corredor, deixando a porta aberta atrás de si. O navio estava balançando um pouco e esperei ouvi-lo tropeçar e cair, mas ele correu como se disso dependesse a própria vida. A porta oscilava sobre suas dobradiças com o movimento da embarcação, e o ruído me incomodava. Levantei e fechei-a, depois voltei às cegas para meu leito. Dormi novamente; mas não tenho idéia de quanto tempo.

“Quando acordei ainda estava bastante escuro, mas fazia um frio desconfortável e me pareceu que o ar ficara úmido. Vocês sabem, aquele odor peculiar de uma cabine que foi encharcada com água do mar. Cobri-me o melhor que pude e cochilei outra vez, imaginando as reclamações que faria no dia seguinte e escolhendo os epítetos mais poderosos do idioma. Pude ouvir meu companheiro de camarote se virar no leito superior. Provavelmente, tinha retornado enquanto eu dormia. Num dado momento, pensei tê-lo ouvido gemer e me perguntei se estaria mareado. Esta é uma situação particularmente incômoda, quando se está logo abaixo desta pessoa. De qualquer modo, acabei dormindo até o raiar do dia.

“O navio jogava muito, bem mais do que na noite precedente, e a luz cinzenta que atravessava a escotilha mudava de tonalidade a cada movimento, segundo o ângulo que o bordo da embarcação impunha ao vidro, voltando-se para o céu ou o mar. Estava muito frio — inexplicavelmente para o mês de junho. Virei-me e olhei para a escotilha que, para minha surpresa, estava toda aberta e presa para trás. Acho que blasfemei em voz alta. Então me levantei e a fechei. Quando me virei, observei o leito superior. As cortinas haviam sido fechadas; meu companheiro provavelmente sentira frio também. Surpreendeu- me o fato de eu ter conseguido dormir tanto. O camarote era desconfortável, embora, estranho dizer, eu não pudesse sentir o cheiro da umidade que tinha me incomodado na véspera. Meu companheiro ainda dormia — excelente oportunidade para evitá-lo, assim, me vesti e fui para o convés. O dia estava tépido e nublado e as águas exalavam um odor oleaginoso. Eram sete horas quando saí — muito mais tarde do que imaginara. Cruzei com o médico que dava sua primeira volta matinal para respirar o ar fresco. Era um jovem do oeste da Irlanda — um camarada formidável, com seus cabelos negros e olhos azuis, já propenso a tornar-se um homem robusto; ele tinha uma expressão despreocupada e saudável que era muito cativante.

“— Linda manhã — comentei, à guisa de introdução.

“— Bem… — disse ele, olhando-me com um interesse imediato — é uma linda manhã e não é uma linda manhã. Não acho que seja uma manhã especial.

“— Não, não está tão linda assim — disse eu.

“— É exatamente o que eu chamo de um clima abafado — retrucou o médico.

“— Fez muito frio nesta noite — observei. — No entanto, quando olhei a minha volta, descobri que a escotilha estava totalmente aberta. Não tinha notado isso quando fui me deitar. E o camarote estava úmido também.

“— Úmido! — exclamou ele. — Qual é o seu camarote?

“— O 105.

“Para minha surpresa o médico teve um sobressalto e olhou-me fixamente.

“— Qual é o problema? — perguntei.

“— Oh… nada — respondeu. — Apenas todos têm se queixado desse camarote nas últimas três viagens.

“— Também tenho reclamações — disse eu. — Certamente ele não foi adequadamente arejado. É uma vergonha!

“— Não acho que possamos fazer alguma coisa — opinou o médico. — Acredito que haja algo… mas não convém assustar os passageiros.

“— Você não está me assustando — repliquei. — Consigo suportar qualquer grau de umidade. Se por acaso me resfriar irei vê-lo.

“Ofereci um charuto ao médico, que ele aceitou e examinou com um olhar crítico.

“— Não é tanto a umidade — observou ele. — De qualquer maneira, acredito que tudo se passará bem. Há mais alguém no camarote?

“— Sim, um camarada endiabrado que sai correndo no meio da noite e deixa a porta aberta.

“Mais uma vez, o médico olhou-me com curiosidade. Em seguida, acendeu o charuto e assumiu um ar grave.

“— Ele voltou depois? — perguntou prontamente.

“— Voltou. Eu estava dormindo, mas acordei, e o ouvi se mexendo. Então senti frio e voltei a dormir. Hoje de manhã encontrei a escotilha aberta.

“— Preste atenção — disse o médico calmamente. — Eu não me importo muito com este navio. Não dou a mínima para a sua reputação. Direi o que devo dizer. Disponho de um camarote espaçoso aqui em cima. Posso dividi-lo com você, embora nunca o tenha visto antes.

“Aquela proposta me surpreendeu bastante. Não entendi por que ele se preocupava tanto com meu bem-estar. Contudo seu modo de falar do navio era peculiar.

Você é muito gentil, doutor — disse eu. — Mas, realmente, acredito que, mesmo agora, o camarote possa ser arejado, ou lavado talvez. Por que você não se importa com o navio?

“— Não somos supersticiosos na minha profissão — respondeu o médico —, mas o mar nos deixa assim. Não quero que seja prejudicado, e não pretendo assustá-lo, mas se quiser meu conselho, mude-se para cá.

Se eu o visse cair no mar — disse ele com veemência —, você ou qual- quer outro passageiro, saberia que estava ocupando o 105. “— Santo Deus! Por quê? — indaguei.

“— Simplesmente porque, nas três últimas viagens, as pessoas que ocu- param o seu camarote desapareceram no mar — respondeu gravemente.

“Aquela informação era assustadora e por demais desagradável, confesso. Olhei firme para o médico de modo a ver se estava zombando de mim, mas ele parecia estar falando sério. Agradeci-o calorosamente pela sua oferta, mas lhe disse que pretendia ser a exceção à regra, segundo a qual quem dormisse naquele camarote em particular acabaria caindo no mar. Ele não disse nada, mas pareceu ainda mais sombrio e insinuou que, antes do final da travessia, seria provável que eu reconsiderasse sua proposta. Em seguida, fomos tomar o café da manhã e apenas um número pequeno de passageiros se encontrava presente. Notei que um ou dois oficiais que tomavam café pareciam preocupados. Após o café, fui para meu camarote a fim de pegar um livro. As cortinas do leito superior ainda estavam cerradas. Não se ouvia nada. Meu companheiro de cabine ainda dormia, era possível.

“Quando saí, encontrei o comissário que estava justamente a minha procura. Sussurrando, disse-me que o capitão queria me ver, depois sumiu pelo corredor, como se quisesse evitar qualquer pergunta. Dirigi-me à cabine do capitão e o encontrei a minha espera.

“— Gostaria de lhe pedir um favor — disse-me ao entrar. “Respondi que faria qualquer coisa para ser útil.

“— O seu companheiro de camarote desapareceu — disse ele. — Pelo que sabemos, ele foi se deitar cedo ontem à noite. Notou alguma coisa de extraordinário em seus modos?

“A pergunta, feita daquela maneira, confirmando exatamente os receios do médico meia hora antes, me chocou.

“— Não está querendo dizer que ele caiu no mar? — indaguei. “— Receio que sim — foi sua resposta.

“— Que coisa mais surpreendente — disse eu. “— Por quê?

“— Então ele é o quarto?! — exclamei. Respondendo outra pergunta do capitão, expliquei, sem mencionar o médico, que havia ouvido a história sobre o camarote 105. Ele pareceu bastante aborrecido com o fato de eu estar a par daquilo. Contei-lhe então o que acontecera durante a noite.

“— O que está dizendo — replicou ele — coincide quase exatamente com o que me foi dito pelos companheiros de camarote dos passageiros desaparecidos. Eles saltaram da cama e correram pelo corredor. Dois deles foram vistos pelo vigia ao caírem no mar; nós paramos o navio e descemos os escaleres, mas eles não foram encontrados. Ninguém, contudo, viu ou ouviu o homem que desapareceu ontem à noite, se é que ele de fato desapareceu. O comissário, que é um sujeito supersticioso, talvez, e esperava que alguma coisa saísse errada, foi procurá-lo de manhã e encontrou seu leito vazio, mas suas roupas estavam lá, da mesma forma como as tinha deixado. Somente o comissário, a bordo deste navio, conhecia a aparência dele e já o procurou em todos os lugares. Sumiu! Agora, quero pedir que não mencione este episódio a nenhum dos passageiros; não quero que o navio fique com o nome sujo, e nada prejudica mais um navio que atravessa o oceano do que histórias de suicídios. Pode escolher qualquer uma das cabines dos oficiais, inclusive a minha, para permanecer durante o resto da viagem. Não é uma oferta justa?

“— Justíssima — eu disse — e fico muito grato. Mas como estou sozinho e tenho o camarote só para mim, prefiro permanecer lá. Se o comissário puder remover os pertences daquele infeliz, ficarei onde estou. Não direi nada sobre o assunto e acho que posso prometer que não seguirei o caminho do meu companheiro de camarote.

“O capitão tentou me dissuadir das minhas intenções, mas preferi ficar só no camarote a partilhar um alojamento com qualquer oficial a bordo. Não sei se agi impensadamente, mas se tivesse seguido seu conselho nada mais teria a contar. Permaneceria aquela desagradável coincidência de vários suicídios ocorridos entre homens que ocuparam a mesma cabine, mas isso teria sido tudo.

“O assunto, no entanto, não estava de modo algum terminado. Obsti- nadamente, decidi que não seria perturbado por aquelas histórias, e cheguei até a argumentar com o capitão. Havia algo de errado com o camarote, eu disse. Ele estava muito úmido. A escotilha fora deixada aberta na noite anterior. Meu companheiro poderia já estar doente quando veio a bordo, e poderia ter sido tomado por alucinações após ter ido dormir. Poderia, naquele exato instante, encontrar-se escondido em algum lugar da embarcação e poderia ser achado mais tarde. O local precisava ser arejado e a tranca da escotilha examinada. Se o capitão me desse licença, eu iria cuidar para que aquelas providências fossem tomadas imediatamente.

“— Claro, é seu o direito de ficar onde achar melhor — retrucou ele, um tanto petulante —, mas gostaria que saísse de lá para eu poder interditar o camarote e acabar com essa história.

“Eu não via as coisas do mesmo modo e deixei o capitão, após prometer manter em sigilo o desaparecimento do meu companheiro de camarote. Ele não tinha conhecido ninguém a bordo e não deram pela sua falta ao Longo do dia. Quando a noite caiu, voltei a encontrar com o médico e ele me perguntou se eu havia mudado de opinião. Eu lhe disse que não.

“— Então mudará muito em breve — disse-me com uma expressão muito séria.”

III

“Jogamos bridge à noite e fui me deitar tarde. Confessarei agora que tive uma sensação desagradável quando voltei para meu camarote. Não pude deixar de pensar no homem alto que vira na noite anterior, que agora estava morto, afogado, arremessado de um lado para outro pelas imensas ondas que ficaram para trás. Seu rosto surgiu diante de mim enquanto me despia e cheguei mesmo a abrir as cortinas do leito superior, como se quisesse me convencer de que ele tinha de fato desaparecido. Também tranquei a porta do camarote. De repente, me dei conta de que a escotilha estava aberta e a fechei. Era mais do que eu podia suportar. Apressadamente, coloquei meu robe e saí em busca de Robert, o comissário responsável por aquele corredor. Eu estava furioso, me lembro, e quando o encontrei arrastei-o rudemente até a porta do 105 e o empurrei na direção da escotilha.

“— Que diabos você está pretendendo, seu patife, deixando a escotilha aberta todas as noites? Não sabe que é contra os regulamentos? Não sabe que, se o navio adernar e a água começar a entrar, nem dez homens seriam capazes de fechá-la? Avisarei ao capitão, seu imbecil, que você está colocando a embarcação em perigo!

“Eu estava extremamente irado. O homem tremia e empalidecera, e então começou a fechar o vidro esférico com o pesado trinco de bronze. “— Por que você não me responde?

“— Por favor, senhor — balbuciou Robert —, não há ninguém a bordo capaz de manter essa escotilha fechada à noite. O senhor mesmo pode tentar. Eu não viajo mais neste navio, senhor; nunca mais. Mas se eu fosse o senhor, simplesmente saía daqui e iria dormir com o médico ou em outro lugar. Olhe só, senhor, está trancada com firmeza ou não está? Tente, senhor, veja se consegue abri-la.

“Eu verifiquei e notei que estava perfeitamente trancada.

“— Pois bem, senhor — continuou Robert triunfante —, eu aposto a minha reputação de comissário de primeira classe que em meia hora ela estará aberta mais uma vez; e presa para trás também, senhor, e é isso o mais assustador!

“Examinei o grande parafuso e a presilha que o prendia.

“— Se voltar a abrir nesta noite. Robert, lhe darei uma gratificação. Não é possível que isso aconteça. Pode ir embora.

“— Uma gratificação, senhor? Muito bem. Obrigado, senhor. Boa noite. Tenha um sono agradável e sonhos deliciosos, senhor.

“Robert se foi pelo corredor, satisfeito por ter sido liberado. É claro que eu pensei que ele estivesse tentando justificar sua negligência, contando uma história absurda, destinada a me assustar e, por isso, não acreditei nele. A conseqüência foi que ele ganhou sua gratificação, e eu passei uma noite muito, mas muito desagradável.

“Fui me deitar e, cinco minutos depois de ter me posto sob os cobertores, o inexorável Robert apagou a luz que ardia atrás do candeeiro de vidro esmerilhado, próximo à porta. Fiquei deitado imóvel no escuro, tentando adormecer, mas logo percebi que seria impossível. Tinha sentido alguma satisfação ao me zangar com o comissário, e aquela distração afastara a incômoda sensação que experimentara no início, quando pensava no homem afogado que havia sido meu companheiro de cabine; mas já não tinha mais sono e fiquei deitado algum tempo, olhando de vez em quando para a escotilha, que eu podia ver parcialmente de onde eu me encontrava, e que, na escuridão, parecia-se com um prato de sopa meio luminoso suspenso nas trevas. Acho que fiquei daquele jeito por uma hora e, pelo que me lembro, estava a ponto de adormecer quando fui despertado por uma corrente de ar frio e pela nítida sensação de receber uma borrifada de gotas do mar sobre o rosto. Levantei-me imediatamente e, não tendo levado em conta no escuro o balanço do navio, fui logo atirado com violência para o outro lado do camarote, caindo sobre o sofá que se encontrava abaixo da escotilha. Mas logo consegui me recompor e me levantei. A escotilha estava mais uma vez aberta e presa por trás!

“Agora, o que segue são fatos. Eu estava bem desperto quando me levantei e, seguramente, teria sido acordado pela queda, se ainda estivesse sonolento. Além disso, machuquei bastante meus cotovelos e meus joelhos, e os ferimentos estavam lá na manhã seguinte para testemunhar o fato, caso eu mesmo duvidasse. A escotilha estava toda aberta e presa por trás — algo tão injustificável que lembro muito bem ter sido uma sensação de espanto e não de medo que se apoderou de mim, ao descobrir o que acontecera. Imediatamente, fechei a escotilha e aparafusei o ferrolho com toda a minha força. Estava muito escuro no camarote. Concluí que a escotilha com certeza havia sido aberta uma hora depois de Robert a ter fechado diante de mim, e decidi ficar observando para ver se ela abriria de novo. Aquelas presilhas de bronze são pesadas e de modo algum fáceis de remover; eu não podia acreditar que o grampo houvesse se soltado com a trepidação do parafuso. Fiquei em pé, espiando através do vidro espesso os vestígios brancos e cinzentos do mar que espumava sob o bordo da embarcação. Devo ter permanecido assim durante 45 minutos.

“De repente, ouvi com clareza alguma coisa se mexendo atrás de mim em um dos leitos e, logo em seguida, assim que me virei instintivamente para olhar — embora, é claro, não conseguisse enxergar nada no escuro —, ouvi um leve gemido. Atravessei com passos rápidos o camarote e abri as cortinas do leito superior, apalpando-o para ver se havia alguém ali. Havia alguém.

“Lembro-me de que, ao colocar minhas mãos lá dentro, tive a sensação de as estar introduzindo no interior de um porão úmido, e por trás das cortinas veio uma lufada de vento que recendia com intensidade a água do mar estagnada. Segurei alguma coisa que tinha a forma de um braço humano, mas estava frouxo e molhado, e glacialmente frio. Mas de repente, quando recolhia minhas mãos, a criatura saltou violentamente na minha direção, parecia uma massa pegajosa e lamacenta, ainda assim dotada de uma força sobrenatural. Cambaleei pelo camarote e, num instante, a porta se abriu e a coisa saiu às pressas. Não tive tempo de ter medo e, me recuperando num segundo, saí correndo pela porta na sua captura, mas era tarde demais. Dez metros na minha frente, pude ver — tenho certeza de que vi — uma sombra escura se movendo na tênue claridade do corredor, rápida como a sombra de um cavalo veloz projetada pela lamparina na noite escura. Mas, num instante, ela desa- pareceu e me encontrei segurando o corrimão que se estendia ao longo do corredor, antes de chegar à porta. Meus cabelos estavam em pé, e um suor frio escorria pelo meu rosto. Não tenho a menor vergonha de afirmar: eu estava terrivelmente apavorado.

“Ainda assim, eu desconfiava dos meus sentidos, e mais uma vez me recompus. Era um absurdo, pensei. O Welsh-Rarebit que tinha comido não me fizera bem. Era um pesadelo. Voltei para o meu camarote e tive que me esforçar para entrar. O lugar estava impregnado com o cheiro de água do mar estagnada, como antes, quando eu tinha acordado na véspera. Foi-me preciso imensa energia para entrar e buscar entre meus pertences uma caixa de velas. Quando acendi uma lanterna de leitura, que sempre carrego na bagagem no caso de querer ler quando está escuro, percebi que a escotilha estava novamente aberta, e uma espécie de pavor arrepiante tomou conta de mim, como nunca acontecera antes, e tampouco espero voltar a sentir. Avancei em seguida com a lanterna e comecei a examinar o leito superior, esperando encontrá-lo encharcado de água do mar.

“Mas fiquei desapontado. A cama havia sido usada, e o cheiro do mar era forte; entretanto os lençóis estavam totalmente secos. Imaginei que Robert não tivera coragem de arrumar a cama após o acidente da noite anterior — fora um pesadelo abominável. Abri as cortinas o máximo que pude e examinei o local com todo cuidado. Tudo perfeitamente seco. Mas a escotilha estava aberta outra vez. Com uma espécie de apática perplexidade diante do horror, fechei-a, aparafusei-a e bati com força usando minha bengala pesada, até o espesso metal começar a vergar sob a pressão. Em seguida, deixei minha lanterna de leitura sobre o encosto do sofá e sentei-me para tentar recuperar os sentidos. Fiquei ali sentado a noite toda, incapaz de pensar em descansar — incapaz de pensar em qualquer coisa. Mas a escotilha permaneceu fechada e eu não acreditava que ela pudesse ser reaberta sem que fosse empregada uma força considerável.

“O dia finalmente raiou e me vesti com vagar, repensando no que ocorrera na última noite. Fazia um belo dia e saí para o convés, me expondo com prazer aos primeiros e puros raios de sol, e respirando a brisa que soprava das águas azuis, tão diferente do odor fétido e estagnado do meu camarote. Instintivamente, virei-me para a popa e caminhei na direção da cabine do médico. Lá estava ele, com um cachimbo na boca, em seu arejamento matinal, exatamente como no dia precedente.

“— Bom dia — disse ele calmamente, porém me observando com evidente curiosidade.

“— Doutor, você tinha razão de fato — admiti. — Há algo estranho em relação àquele lugar.

“— Eu achava mesmo que você mudaria de idéia — respondeu com um ar triunfante. — Teve uma noite ruim, não? Posso lhe preparar um drinque? Tenho uma receita da melhor qualidade.

“— Não, obrigado — respondi. — Mas gostaria de contar-lhe o que aconteceu.

“Tentei então explicar o mais claramente possível o que de fato havia ocorrido, sem omitir aquele pavor que eu nunca havia experimentado em toda a minha vida. Detive-me em particular no fenômeno da escotilha, que era um detalhe que eu podia comprovar, ainda que todo o resto tivesse sido uma ilusão. Eu a fechara duas vezes durante a noite, e na segunda vez, chegara a empenar o trinco de bronze, forçando-o com minha bengala. Acredito ter insistido um bocado neste pormenor.

“— Você parece pensar que eu duvide da sua história — disse o médico, sorrindo ao ouvir minha narrativa detalhada sobre o estado da escotilha. — Não duvido nem um pouco. Permita-me insistir no meu convite. Traga seus pertences e pode ficar com a metade de meu camarote.

“— Venha você e fique com a metade do meu por uma noite — disse eu. — Ajude-me a chegar ao fundo desse mistério.

“— Você chegará ao fundo de uma outra coisa, se tentar — respondeu o médico.

“— Do quê? — perguntei.

“— Ao fundo do mar. Eu vou deixar este navio. É mais prudente. “— Então não me ajudará a descobrir…

“— Não — respondeu ele imediatamente. — Faz parte do meu trabalho conservar meu bom estado mental, não sair por aí descobrindo mistérios fantasmagóricos.

“— Acredita mesmo que se trata de um fantasma? — indaguei com desdém. Todavia, enquanto eu falava, lembrei-me com detalhes da sensação horrível ante o sobrenatural que se abateu sobre mim durante a noite. O médico voltou a falar com certa rispidez:

“— Você tem uma explicação sensata a oferecer sobre esses eventos? — perguntou. — Não, você não tem. Muito bem, você diz que encontrará uma explicação. Eu digo que não, simplesmente porque não existe nenhuma explicação.

“— Mas, meu caro — retorqui — você, um homem das ciências, está me dizendo que tais coisas não podem ser explicadas?’

“— Estou — respondeu resolutamente. — E, se pudessem, eu não estaria interessado na explicação.

“Eu não me importava de passar mais uma noite sozinho no camarote. Eu estava determinado a alcançar a raiz daquele inquietante enigma. Não acredito que haja muitos homens que dormiriam ali sozinhos, após passar duas noites como aquelas. Mas eu estava decidido a tentar, já que não conseguia encontrar ninguém que partilhasse a vigília comigo. O médico, evidentemente, não estava inclinado a tal experimento. Alegou que era médico e, no caso de um acidente qualquer se produzir a bordo, ele deveria estar sempre de prontidão. Não podia permitir que seus nervos fossem perturbados. Talvez tivesse razão, mas tendo a achar que sua precaução era fruto de seu estado de espírito. Indagado, ele informou que não havia ninguém a bordo capaz de se aliar a mim naquela investigação e, após conversarmos mais um pouco, eu o deixei. Mais tarde, encontrei o capitão e lhe contei minha história. Disse-lhe que, se ninguém poderia passar a noite comigo, eu pediria permissão para que a luz no corredor fosse deixada acesa a noite toda, e tentaria descobrir o mistério sozinho.

“— Veja bem — disse-me ele —, já sei o que vou fazer: passarei eu mesmo a noite com você e veremos o que acontece. Estou convicto de que poderemos descobrir isso juntos. Pode haver algum sujeito, escondido a bordo, querendo roubar o corredor dando sustos nos passageiros. É possível que, simplesmente, haja algo de estranho na carpintaria daquele leito.

“Sugeri que chamasse o carpinteiro do navio para examinar o local; mas eu estava muito satisfeito com a oferta do capitão de passar a noite no meu camarote. Como combinado, ele mandou o carpinteiro ir me procurar e fazer o que eu lhe pedisse. Seguimos para o camarote. Toda a roupa de cama foi retirada do leito superior e nós examinamos detalhadamente o lugar, procurando uma tábua solta ou um revestimento que pudesse ser aberto ou removido. Verificamos todas as tábuas, abrimos o soalho, desatarraxamos os encaixes do leito inferior e o desmontamos todo; resumindo, não houve uma polegada do camarote que não tivesse sido examinada. Tudo se encontrava em perfeita ordem, e recolocamos tudo no lugar. Quando estávamos terminando nossa tarefa. Robert apareceu à porta e olhou para dentro.

“— E então, senhor, acharam alguma coisa? — perguntou, com um sorriso horripilante.

“— Você tinha razão em relação à escotilha. Robert — eu disse, en- tregando-lhe a gratificação prometida.

“O carpinteiro, silencioso, concluiu com destreza seu trabalho, seguindo minhas orientações. Quando acabou, me disse:

“— Sou um homem simples, senhor. Mas acredito que seria melhor retirar seus pertences daqui e me deixar trancar com uma dúzia de parafusos de quatro polegadas a porta desta cabine. Este camarote nunca trouxe nada de bom, senhor, essa é a verdade. Já foram perdidas quatro vidas aqui, que eu me lembre, e em quatro viagens. Melhor desistir, senhor, melhor desistir!

“— Tentarei mais uma noite — disse eu.

“— Melhor desistir, senhor, melhor desistir! É uma tentativa inútil — repetiu o carpinteiro, colocando suas ferramentas numa sacola e saindo da cabine.

“Mas meu ânimo tinha melhorado consideravelmente com a perspectiva de contar com a companhia do capitão, e eu estava decidido a ir até o fim daquela estranha história. Abstive-me de Welsh-Rarebit e qualquer bebida alcoólica naquela noite, e nem mesmo participei do costumeiro jogo de bridge. Queria guardar meu sangue-frio e, por vaidade, estava ansioso para causar uma boa impressão ao capitão.”

IV

“O capitão era um desses espécimes extremamente fortes e joviais da humanidade navegante, cuja combinação de coragem, audácia e placidez diante das adversidades lhes confere um alto grau de confiança. Não era um homem que se deixasse levar por histórias infundadas, e o simples fato de estar disposto a acompanhar-me naquela investigação era prova de que concordava que havia algo bastante errado, que não podia ser resultado de incipientes teorias, tampouco desprezado como uma banal superstição. De um certo modo, também, sua reputação estava em jogo, assim como a reputação do navio. Perder passageiros que caem no mar durante a viagem é algo gravíssimo, e ele sabia disso.

“Por volta das dez horas, enquanto eu fumava meu último charuto, ele veio a mim e nos afastamos do grupo de passageiros que ocupava o convés aproveitando o calor da noite.

“— Esse assunto é sério, Brisbane — disse ele. — Temos que nos preparar para duas possibilidades: ficar decepcionado ou enfrentar uma situação bem difícil. Entenda que isso não é brincadeira e, o que quer que ocorra, pedirei que assine seu nome num relatório. Se não acontecer nada hoje à noite, tentaremos amanhã e na noite seguinte. Você está preparado?

“Descemos então pela escada e entramos no camarote. Antes de entrar, pude notar Robert, o comissário, que nos observava no corredor, um pouco adiante, com seu sorriso habitual, como se estivesse certo de que algo horrendo estava prestes a acontecer. O capitão fechou a porta atrás de nós e a trancou.

“— Poderíamos colocar sua mala contra a porta — sugeriu. — Um de nós pode sentar-se sobre ela. Assim não haverá como alguém fugir do quarto. A escotilha está fechada?

“Encontrei-a como a havia deixado pela manhã. Aliás, sem usar uma alavanca, do modo que eu a deixara, ninguém poderia tê-la aberto. Descerrei as cortinas do leito superior, de maneira que pudesse observar bem seu interior. Seguindo o conselho do capitão, acendi minha lanterna de leitura e a coloquei sobre os lençóis brancos na cama de cima. Ele insistiu em sentar-se sobre a mala, queria ser capaz de jurar depois que tinha sentado diante da porta.

“Em seguida, pediu-me que vasculhasse todo o camarote, operação essa rapidamente realizada, já que consistia apenas em olhar sob o leito inferior e sob o sofá, abaixo da escotilha. Ambos os locais estavam perfeitamente vazios.

“— É impossível qualquer ser humano entrar aqui — disse eu — ou abrir a escotilha.

“— Muito bem — concordou calmamente o capitão. — Se virmos alguma coisa agora, será fruto de nossa imaginação ou algo sobrenatural. “Sentei na beira do leito inferior.

“— A primeira vez que isso aconteceu — disse o capitão, cruzando as pernas e encostando-se contra a porta — foi em março. O passageiro que dormia aqui, no leito superior, soubemos depois tratar-se de um lunático. De qualquer modo, era tido como um desequilibrado e tinha comprado sua passagem sem que seus conhecidos soubessem. Ele saiu correndo para fora no meio da noite e se lançou ao mar, antes que o oficial do turno pudesse intervir. Paramos o navio e descemos os escaleres; era uma noite calma, pouco antes de a tempestade nos alcançar; no entanto não conseguimos encontrá-lo. Evidentemente, seu suicídio foi depois atribuído a sua insanidade.

“— Imagino que isso aconteça com freqüência — comentei, distrai- damente.

“— Não. Não com freqüência — disse o capitão. — Nunca acontecera antes, na minha experiência, embora tenha ouvido falar de casos assim em outros navios. Pois bem, como eu dizia, isso aconteceu em março. Na viagem que se seguiu… O que você está olhando? — perguntou ele, interrompendo bruscamente sua narrativa.

“Acho que não lhe respondi. Meus olhos se viraram para a escotilha. Pareceu-me que o trinco de bronze estava começando a girar muito lentamente, tão lentamente que não tive certeza de que aquilo estava de fato acontecendo. Observei atento, fixando na minha mente sua posição e tentando certificar-me de que havia mexido. Vendo o que eu olhava, o capitão se concentrou também na mesma direção.

“— Está se mexendo! — exclamou ele, com convicção. — Não, não está — acrescentou logo em seguida.

“— Se fosse a vibração da rosca — disse eu —, ela teria se aberto durante o dia, mas a encontrei agora há pouco apertada como a deixei hoje de manhã.

“Levantei-me e verifiquei a porca do parafuso. Certamente, estava frouxa, pois com algum esforço pude movê-la com minhas mãos.

“— O que é estranho — disse o capitão — é que o segundo homem que caiu no mar supostamente passou pela escotilha. Passamos um momento difícil por causa disso. Aconteceu no meio da noite, e o tempo estava horrível; houve um alarme indicando que uma das escotilhas estava aberta e a água entrando na cabine. Eu desci e encontrei tudo inundado, a água penetrando a cada vez que a embarcação oscilava, e a escotilha balançando, presa apenas aos ferrolhos superiores. Enfim, conseguimos fechá-la, mas a água causou algum dano. Desde então este lugar exala de vez em quando o cheiro do mar. Imaginamos que o passageiro tivesse passado pela abertura, embora Deus saiba como teria conseguido. O comissário sempre me diz que não consegue manter nada fechado aqui. Palavra de honra, posso senti-lo agora, você não? — indagou ele, respirando com uma expressão desconfiada.

“— Posso, distintamente — respondi e estremeci ao sentir aquele mesmo odor de água do mar estagnada dentro da cabine. — Mas para ter um cheiro assim, o lugar deveria estar encharcado — prossegui — e no entanto, quando o examinei com o carpinteiro hoje de manhã, tudo estava seco. É algo extraordinário… o que houve?

“Minha lanterna de leitura, que fora colocada no leito superior, apagou-se repentinamente. Havia ainda bastante claridade vindo da lâmpada do corredor, ao lado da porta. O navio balançava muito e a cortina do leito superior agitava-se dentro do camarote. Ergui-me logo de onde estava sentado, no bordo da cama, e o capitão, ao mesmo tempo, pôs-se de pé soltando um grito de surpresa. Eu me levantara na intenção de apanhar a lanterna e examiná-la, quando ouvi sua exclamação e logo em seguida seu pedido de socorro. Parti na sua direção. Ele estava lutando com toda sua força para fechar a escotilha. Apesar de seu empenho, ela parecia virar no sentido contrário. Apanhei minha bengala, feita de carvalho resistente, que sempre carrego comigo, e tentei ajudá-lo como podia. Mas a bengala se partiu e eu caí no sofá. Quando consegui me levantar, a escotilha estava inteiramente aberta, e o capitão estava em pé, as costas contra a porta, os lábios lívidos.

“— Há alguma coisa naquele leito! — berrou ele com uma voz estranha, seus olhos esbugalhados. — Cuide da porta, enquanto eu olho. O que quer que seja, não deixaremos escapar!

“Mas, em vez de tomar seu lugar, pisei sobre a minha cama e agarrei algo que se encontrava no leito superior.

“Era alguma coisa fantasmagórica, tão horrível que não há palavras para descrevê-la, e estava se mexendo sob minha mão. Era como o corpo de um homem há muito afogado, e que ainda assim se movia, e tinha o vigor de dez homens vivos; mas continuei segurando como podia aquela coisa escorregadia, lodosa, terrível, os olhos brancos e mortos pareciam me fixar dentro da penumbra; o odor pútrido de água do mar rançosa o envolvia, e os cachos úmidos de seus cabelos lustrosos cobriam seu rosto defunto. Lutei com a coisa morta; ela se lançou contra mim, fazendo-me recuar, e quase quebrou meu braço; seu braço cadavérico agarrou meu pescoço e o morto-vivo me subjugou, de tal modo que, por fim, eu berrei bem forte e, soltando-o, caí.

“Deitado no chão, vi a coisa passar por mim e, agora, parecia ter atacado o capitão. Este, na última vez que eu o vira, estava em pé, o rosto pálido e os lábios rígidos. Tive a impressão de que ele conseguira acertar um soco violento na criatura morta e, em seguida, acabara também caindo no chão, com um grito inarticulado de terror.

“Aquela coisa ficou imóvel por um instante, como se pairasse sobre o corpo prostrado do capitão, e eu poderia ter berrado outra vez de pavor, mas tinha perdido a voz. A coisa sumiu repentinamente, e pareceu aos meus sentidos perturbados que ela saíra pela escotilha, embora, considerando a estreita abertura, aquilo fosse inimaginável. Fiquei um bom tempo estendido no chão, o capitão deitado ao meu lado. Por fim, consegui recuperar um pouco os sentidos e me mexi, percebendo de imediato que meu braço estava quebrado — o osso do meu antebraço esquerdo, perto do pulso.

“De algum modo, consegui me erguer e com minha mão ilesa tentei levantar o capitão. Ele gemeu e se moveu, finalmente voltando a si. Não estava ferido, mas parecia de todo aturdido.

“Bem, vocês querem ouvir mais? Não há mais nada. É o fim da minha história. O carpinteiro executou seu plano e trancou a porta do camarote 105 com tábuas e enormes parafusos; e se um dia vocês viajarem no Kamtschatka, podem solicitar um leito naquela cabine. Dirão que ela já está reservada. Claro, reservada pela criatura morta.

“Concluí minha viagem no camarote do médico. Ele tratou do meu braço fraturado e me aconselhou a não `brincar com fantasmas e essas coisas’ nunca mais. O capitão manteve-se calado e jamais voltou a navegar naquele navio que, apesar disso, ainda continua em atividade. E eu tampouco voltarei a embarcar nele. Foi uma experiência desagradável demais e me assustou muito, algo que detesto. Isso é tudo. Foi assim que eu vi um fantasma — se é que era um fantasma. De qualquer maneira, estava morto.”