Espelho de Água – Após passar a tarde inteira jogando futebol com seus amigos, o pequeno garoto exausto, chega à casa de sua avó. Sua respiração pesada condiz com seu rosto encharcado, o suor escorre por sua testa e bochechas, tão molhado como se tivesse acabado de sair do profundo rio que corre vagarosamente ali perto.
— O vó… Tem bolo? — grita o pequeno garoto. — Estou doido de fome!
— Isso é coisa que se fale, menino? — responde a velha senhora, levantando de sua cadeira e deixando o jornal regional de lado. — Tem sim, mas primeiro vai secar o rosto, e lave as mãos.
O pequeno garoto sai da cozinha mostrando seu sorriso, indo direto para o simples banheiro nos fundos da casa.
— Para onde você está indo? — pergunta a avó, desconfiada.
— Uai vó… — retruca o garoto, impaciente. — Estou indo para o banheiro, você disse pra eu lavar as mãos, ué.
— Sim, eu disse! Mas vá secar o rosto primeiro! — resmunga a velha senhora no interior da cozinha, ela aparenta uma expressão severa e voz rude.
“Velha doida” pensa o pequeno garoto enquanto seca o rosto com alguns guardanapos que pegou na mesa, “Faz mal olhar no espelho com o rosto molhado”… O jovem garoto se irrita “Que bobeira de gente velha” ele se enaltece. “É cada uma superstição que ela inventa… Não posso comer manga e beber leite, não posso deixar o chinelo virado, não posso ficar sem camisa se estiver trovejando, nem cortar as unhas depois do almoço… Coisa de gente velha mesmo.”
Horas depois a noite invade o céu, as estrelas escondem-se atrás de densas nuvens, um clima normal para aquela região chuvosa e alagada. Os pais do pequeno garoto voltaram para casa após o dia de trabalho árduo, deixando a criança sobre os cuidados da avó, eles sabem que não haveria problemas, sabem que ambos são responsáveis. Eles decidem que hoje será uma noite em família, o bom jantar seguido da deliciosa sobremesa que a mãe havia preparado, a grande e acolhedora casa a beira-rio será mais uma vez o local favorito daquelas pessoas.
Após o jantar, a família se prepara para dormir. Boas noites são ditas e pessoas vão para suas respectivas camas, menos o pequeno garoto, esta criança corajosa quer testar sua teoria… Jovem, corajoso e rebelde, ele quer desafiar a superstição de sua avó, “Será que isso é verdade?” ele pensa, “Uma coisa boba dessa não pode me fazer adoecer ou surgir verrugas em meu rosto, muito menos causar algo pior!”. Ele espera até que todas as luzes estejam apagadas, o pequeno aventureiro não quer ser surpreendido por sua avó, isso causaria problemas, o que acabaria com seu grande plano. O garoto odeia castigos, ele nunca apanhou de seus pais, mas os castigos são severos e duradouros. Da última vez, quando quebrou a janela da sala com seu pião, o garoto ficou duas semanas sem poder brincar na rua com seus amigos, não poderia sair de casa a não ser para a escola, o tédio do aprisionamento foi quase fatal.
O garoto pensa em sua avó enquanto cria coragem de sair do quarto, aquela velha senhora, sempre com seu casaco de tricô, cobrindo completamente seus braços e pescoço, uma pessoa estranha que às vezes fala de gente que ninguém conhece, se irrita fácil e geralmente parece triste, principalmente quando encara o rio atrás da casa. Mesmo que tenha um pavio curto é uma boa avó, sempre atenciosa, mas rígida, poderia colocá-lo de castigo por perambular à noite pela casa.
Cautelosamente a criança sai de sua cama, atravessa a cozinha e vai para o banheiro dos fundos, o único lugar que possui um espelho naquela casa. Todas as luzes permanecem apagadas, após chegar a seu destino, gentilmente ele fecha a porta e acende a pequena lâmpada ao lado do espelho, a jovem criança abre a torneira e coloca o rosto sob a água fria, ele lava os cabelos e com as mãos juntas em forma de concha acumula uma boa quantidade de água, depois de afundar o rosto no pequeno lago em suas mãos ele está pronto para o teste.
O garoto levanta a cabeça com os olhos fechados e respira fundo, mesmo que não tenha dúvidas que nada vai acontecer isso tudo é um ato de coragem, ele abre os olhos perante o espelho. Então… Ele vê!
Com os olhos arregalados e boquiaberto o pequeno garoto permanece imóvel perante o espelho. Em um movimento brusco, a porta do banheiro é aberta, a velha senhora puxa a criança pelo braço, segura-o nos ombros e seca seu rosto com a camisa do pijama.
— Acorda! — ela grita enquanto sacode o neto. — Eu disse pra não fazer isso! Eu disse pra não fazer isso! Não era pra fazer…
O pequeno garoto reage, sua expressão volta ao normal. Assustado, ele abraça sua avó.
— O que aconteceu, vovó? — ele pergunta durante o abraço apertado. — Eu… Eu não lembro.
— Meu filho. — responde a avó com os olhos fechados, lágrimas escorrem por seu rosto, ela acaricia os cabelos do menino. —Você viu algo que não deveria… E agora eu não posso fazer nada para te ajudar. Não mais…
A noite foi repleta de pesadelos macabros, a criança sonhava que estava se afogando, mas não podia desmaiar ou acordar. Sentia a água fria invadindo seus pulmões, seu peito ardia assim como seus olhos. Após essa terrível noite de horrores, o pobre garoto adquiriu hidrofobia de uma forma estranhamente forte, quando viu seu pai tomando um simples copo de água pela manhã, a criança se encolheu e chorou em um canto, inconsolável. Passou o dia trancafiado em um dos quartos da grande casa, sozinho, tremendo e com um lenço no rosto, ele não se permite chorar, só a ideia das lágrimas molhando sua face é aterrorizante.
A velha senhora liga para os pais no trabalho, diz que teme pela segurança do neto, informa a situação em que o jovem se encontra, mas os pais céticos dizem que é só uma fase, “Não posso ir agora! Depois do trabalho preciso ir ao hospital, mas não se preocupe… Amanhã ele vai estar melhor” responde a mãe. Colocando o telefone novamente no gancho, a idosa vai visitar o neto, ela fez questão de limpar o rosto com seu lenço, não queria nem uma gota de suor, o que seria suficiente para causar uma crise na jovem criança.
Entrando no quarto a velha senhora encontra um ambiente escuro, porém barulhento. Ela acende a luz e se depara com o neto agachado em frente ao ventilador, ele está cabisbaixo, “eu não posso nem soar” diz a pobre criança. A avó, com um pouco de esforço, senta-se ao lado da criança, ela coloca a mão sobre o ombro frio do garoto, eles se abraçam.
— Quando éramos pequenas. — diz a velha senhora. — Minha irmã e eu ouvimos a mesma ladainha que lhe contei… — suspira a avó, olhando para o ventilador. — Ao contrário de mim, minha irmã era corajosa e desafiadora, assim como você, ela tentou encarar a lenda, e assim como você, ela sofreu.
— Minha mãe nunca falou que ela tinha uma tia… Porque ninguém nunca falou dela, vó?
— Sua mãe nunca soube, nem seu pai, nem os meus pais souberam.
— Como assim? Como um pai não sabe que tem um filho? — a criança pergunta, com uma voz fraca.
— Meu neto, como eu disse, ela fez o mesmo que você… Ela viu algo no espelho, algo que a apagou de nossas vidas, ninguém sabe que ela existiu, ninguém soube, ninguém saberá…
— Mas e você vovó? Você sabe o que aconteceu…
— Eu não sou do tipo de pessoa que se esquece dessas coisas. Meu Deus… Eu disse para sua mãe para não colocar outro espelho nessa casa, eu disse para ela…
— Vó.
— O que foi? — disse a velha senhora abraçando seu neto. — Pode falar.
— O que eu vi no espelho?
A velha senhora suspira.
— Aquele rio atrás da casa, já foi muito frequentado, crianças fugiam de casa para nadar por ali, mas algumas nunca voltavam.
— Elas se afogavam? — a jovem criança se assusta.
— Sim, meu neto. Há muito tempo, a primeira criança se afogou e seu corpo nunca foi achado. Pode imaginar a solidão? Ficar tanto tempo sob as águas escuras e nunca ver a luz? Antigamente a regra da brincadeira era não molhar alguém que estivesse seco, empurrar para o lago uma pessoa que não estivesse molhada era algo bem feio de se fazer. Então, às vezes, quando alguém molhado chegava perto das margens do rio e olhava seu reflexo, a primeira criança ganhava um amigo, alguém para brincar nas profundezas, alguém para acabar com a solidão… Mas as coisas não pararam nas margens, assim como nas águas daquele rio, os espelhos também revelam seu rosto para ti, e também como será o rosto do novo amigo da primeira criança.
— Vovó, eu vi a primeira criança? Eu não quero ser esquecido!
— Você viu a si mesmo, meu jovem, você se viu embaixo do rio, nas águas profundas e escuras. A primeira criança sabe como é a dor da solidão, ela sabe qual a dor de perder alguém que ama. Por isso ela faz os entes queridos esquecerem-se de quem foi levado, assim a dor fica mais… Tolerável.
— Vovó… Eu não me sinto bem
— Eu vou buscar algo pra você comer. — responde a velha senhora soltando seu neto. — Um pedaço de pão, está bom?
—Está sim, muito bom…
A carinhosa avó entra na cozinha, abre a sacola de pães e pega um pequeno pedaço. Ela cuida para que não tenha mais lágrimas no rosto antes de voltar para o quarto. Quando sai da cozinha ela sente o pé ficar úmido, uma grande poça de água está no chão, estende-se da cozinha ao quarto em que está o pobre garoto. O pedaço de pão seco vai de encontro à água no piso de azulejos, a velha senhora corre para seu neto.
O pequeno garoto continua agachado no mesmo lugar, seu corpo totalmente ensopado, água escorre por suas roupas e se espalha por todo o quarto. A avó ajoelha e abraça a criança, com o envolver de seus braços, o que antes era seu neto, se transforma em água, e escorre por entre seus dedos. A velha senhora permanece ali por um tempo, suas roupas molhadas, assim como o chão, não são um incômodo, não tanto quanto lembrar.
A filha, da antiga avó, chega do trabalho. Ela encontra o chão da casa encharcado, assim como a velha senhora.
— Mãe? — pergunta a filha da idosa desolada. — O que aconteceu? Estourou algum cano, de novo?
— Sim minha filha. — responde à idosa, limpando as lágrimas. — foi isso mesmo.
A filha pega uma toalha e entrega para a mãe, enquanto seca o rosto, a velha senhora percebe um sorriso na face de sua primogênita, “o que foi?” pergunta a matriarca.
— Eu já desconfiava, mas agora tenho certeza, mãe… Eu estou grávida! Vou ter meu primeiro bebê! Eu sei que já estou na casa dos quarenta… Mas meu marido não cansa de dizer que quer ser pai.
A pobre idosa se abala com aquelas palavras. Em prantos a velha senhora corre para o banheiro. Ela enxagua o rosto que acabara de secar e fita o espelho. No vidro ela se vê, a pele está podre em seu reflexo, olhos vermelhos, uma secreção esverdeada escorre por seus ouvidos, boca e nariz, mas ela não se assusta, não é a primeira vez que vê aquela imagem.
— Me faça esquecer! — grita a velha senhora para o espelho. — Por favor!
— Não! — responde seu reflexo. — Você se lembra de tudo, eu sei! Você estava ao lado de sua irmã quando me viram pela primeira vez, mas você não quis vir brincar comigo. Você tentou se matar! Eu faço as pessoas esquecerem pra ser mais fácil, mas você é uma suicida, faz as pessoas que ficam sofrer, e pra gente do seu tipo o jogo é outro… Eu não vou te deixar morrer, eu não vou te deixar esquecer, eu não vou deixar você brincar com a gente!
— Me mate… — Suplica a velha senhora, enquanto arregaça as mangas e fita as várias cicatrizes em seus pulsos. — Eu não aguento mais… Você levou meus outros quatro filhos, meus primeiros três netos, minha filha não merece isso, a pobre coitada nem desconfia de nada… Você tem que me perdoar… Tem que me matar!
— A única coisa que eu tenho que fazer é você sofrer! Adeus, velha imunda, adeus. — o reflexo volta a ser como deveria, revela o rosto de uma idosa desamparada, que já sofreu demais.
A pobre senhora senta-se no chão do banheiro, a pia transborda e uma poça forma-se à sua frente. Ela fita a pequena quantidade de água e pensa que o único conforto é a esperança de que seu próximo neto não seja levado. Que eles nunca mais olhem, com os rostos molhados, para o espelho de água.
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