Deuses no Exílio – Heinrich Heine

Deuses no Exílio

Heinrich Heine

O que pretendo é contar a metamorfose que os deuses gregos e romanos sofreram, transformando-se em demônios, quando o cristianismo assumiu o poder universal. A superstição do povo atribui a esses deuses uma real existência, no entanto amaldiçoada, combinando neste ponto com os ensinamentos da Igreja que, como os filósofos, os consideram mitos, falsas invenções, erros, mas os admite como manifestações do Mal, despojados de todo poder pela vitória de Cristo e reduzidos que foram a miseráveis existências na obscuridade de templos em ruínas ou grutas encantadas. Manifestações que, por sua sensualidade e beleza, mais ainda quando através da dança e do canto, levam à apostasia cristãos vacilantes que se perdem na floresta…

Ao leitor, lembrarei que as atribuições dos deuses antigos, na ocasião em que o Cristianismo obteve sua vitória final — isto é, no século III — revelaram impressionante analogia com os derradeiros acontecimentos de suas vidas, enquanto poderosos. Encontraram-se nessa altura na mesma situação de desespero dos tempos antigos, da época revolucionária em que os Titãs escaparam da reclusão em Orcus, e, através de Pelion e Ossa, conseguiram subir ao Olimpo. Os pobres deuses foram então obrigados a fugir vergonhosamente, escondendo-se na Terra, sob os mais variados disfarces. Muitos deles seguiram para o Egito onde, para sua maior segurança e como é aliás bastante sabido, assumiram formas de animais.

Do mesmo modo, quando o verdadeiro Senhor do Universo alçou às alturas celestiais a bandeira da Cruz, e os iconoclastas e fanáticos monges passaram a rechaçar os deuses a fogo e ferro e através de maldições, arrasando seus templos, as infelizes divindades foram outra vez compelidas a fugir. Trataram então de se salvaguardar sob diversas aparências, nos mais recônditos esconderijos.

A maioria desses pobres refugiados, desprovidos de abrigos e da divina ambrosia, teve necessidade de procurar trabalho para viver. Em tais circunstâncias, muitos deles, cujos túmulos haviam sido confiscados, tornaram-se lenhadores ou operários na Alemanha, obrigados a beber cerveja em vez de néctar. Dizem que Apolo ficou reduzido a situação tão precária que se viu na contingência de aceitar um emprego de tratador de animais. Em outros tempos, ele cuidara das vacas de Admetus; seria agora pastor na Áustria. No entanto, despertou suspeita devido à delicadeza de seu canto. Ao ser reconhecido por um culto monge como um deus mágico da Antiguidade, foi entregue às cortes eclesiásticas e, sob tortura, confessou ser Apolo. Antes de ser executado, pediu que lhe deixassem tocar citara e acompanhá-la com seu canto. Tocou de forma tão emocionada e encantadora, e tinha o rosto tão belo, que as mulheres choraram e muitas delas acabaram adoecendo logo depois. Passado um tempo, sob a impressão que aquilo fora feitiço de vampiro, decidiram remover seu corpo da sepultura e queimá-lo preso a um poste. Achavam que este seria um remédio infalível para as mulheres adoecidas. No entanto, o túmulo foi encontrado vazio.

Pouco tenho a relatar a respeito do destino de Marte, antigo deus da guerra. Estou inclinado a acreditar que ele, durante os tempos feudais, se aproveitou da doutrina predominante, o que talvez lhe tenha sido de muita utilidade. Lank Schimmelpenning, sobrinho do carrasco de Munique, teria encontrado Marte em Bolonha e com ele conversado. Pouco antes, ele servira de pastor a Froundsberg e teria presenciado o saque de Roma. Sua mente deve ter se enchido de amargos pensamentos ao ver sua cidade favorita e os templos, onde ele e seus irmãos tanto haviam sido reverenciados, agora horrivelmente destruídos.

Melhor destino que Marte ou Apolo teve Baco. A lenda nos conta o seguinte:

Existem imensos lagos no Tirol, circundados por árvores que se refletem em suas águas azuladas. O murmúrio das águas e das árvores provoca estranhas sensações a quem anda pelas redondezas. Numa das margens de um determinado lago, situava-se a cabana de um pescador que vivia da pesca e do transporte de viajantes que precisassem passar para a outra margem. Ele possuía um grande barco, preso ao tronco de uma velha árvore, não muito distante de sua casa. Era ali que vivia em paz. Um dia, por volta do equinócio do outono, perto da meia-noite, ele escutou uma batida à janela. Abriu a porta e viu três monges com as cabeças encapuzadas e parecendo bastante inquietos. Apressadamente, um deles pediu-lhe o uso do barco, prometendo devolvê-lo em poucas horas. Eram três os monges; o pescador não podia negar o empréstimo. Soltou o barco e voltou para a cabana assim que eles entraram na embarcação. Deitou-se e, sendo jovem, logo adormeceu; mas depois de algumas horas foi despertado pela volta dos monges. Foi ao encontro deles para checar o estado do barco; um deles colocou-lhe na mão uma moeda de prata e os três afastaram-se apressadamente. O pescador estremeceu e não foi devido ao frio: uma estranha sensação o invadira, pois seu coração parecia ter parado quando o monge lhe tocara a mão. Ele tinha os dedos frios como gelo. Durante vários dias o pescador não conseguiu se esquecer daquela sensação. Mas a juventude logo se livra de acontecimentos misteriosos e o rapaz não pensou mais naquilo, até que no ano seguinte, bem na época dos equinócios outonais, aproximadamente à meia-noite, ouviu uma batida à janela e novamente surgiram os três monges encapuzados, e uma vez mais lhe pediram o barco. O pescador atendeu-os, desta vez com menos aflição; mas quando, depois de algumas horas, os monges voltaram e um deles lhe colocou apressadamente a moeda na mão, ele outra vez estremeceu ao sentir o contato dos dedos gelados. Isto passou a acontecer todos os anos, na mesma ocasião e da mesma maneira. Finalmente, ao aproximar-se o sétimo ano, uma vontade irresistível se apoderou do pescador; queria a todo custo conhecer o segredo que se escondia sob aqueles capuzes. Arranjou no barco um monte de redes que lhe servissem de esconderijo sob o qual se colocaria enquanto os monges se preparassem para a travessia. Na época habitual, após a chegada dos sombrios viajantes, o pescador conseguiu se esconder debaixo das redes. Para seu espanto, a viagem durou pouco tempo, pois que ele, pescador e barqueiro, geralmente levava uma hora para chegar à margem oposta. Maior ainda foi sua surpresa ao contemplar, em local tão familiar para ele, enorme e antes nunca vista floresta, cheia de estranhas flores. Inúmeras lanternas presas às árvores e a altos pedestais ostentavam vasos de resplandecentes rosas; o brilho da lua era tão intenso que o pescador tudo podia ver, como se fosse em pleno dia. Eram centenas de jovens de ambos os sexos, muitos deles belíssimos. Por outro lado, seus rostos eram de uma palidez de mármore, assim como suas roupas infinitamente alvas — brancas túnicas, bordadas em púrpura, davam-lhes a aparência de estátuas. As moças usavam grinaldas de folhas de parreiras nas cabeças, ao natural ou entrelaçadas de ouro e prata; seus cabelos eram trançados em forma de coroas, descendo em cachos soltos pelas nucas. Os rapazes também usavam grinaldas de folhas de parreira. Todos, mulheres e homens, traziam nas mãos bastões cobertos de folhas de vinha e dirigiam-se alegremente aos recém-chegados. Um deles afastou o capuz, revelando-se um homem de meia-idade, com a fisionomia repulsiva e cheia de luxúria, orelhas de bode e escandalosamente sensual na aparência. O segundo, também com o capuz afastado, revelou-se barrigudo e em cuja calva cabeça as jovens maliciosas depositaram uma grinalda de rosas. Os rostos dos dois monges, assim como o dos componentes do estranho grupo, eram alvos como a neve. E alvo como a neve era também o rosto do terceiro monge que, dando uma gargalhada, tirou bruscamente o capuz. Desamarrando o cordão que lhe prendia as vestes, com um gesto de tédio tirou a batina, o crucifixo, o rosário. Usando uma túnica resplandecente como diamante, surgiu um maravilhoso jovem de lindas formas, se bem que algo afeminado na sinuosidade das cadeiras e na finura esbelta da cintura. Lábios delicadamente curvos e suaves feições davam-lhe uma aparência feminina; mas havia em seu rosto algo de ousado, um certo heroísmo displicente. As mulheres acariciavam-no com selvagem entusiasmo; em sua cabeça colocaram uma coroa de marfim e cobriram seus ombros com uma magnífica pele de leopardo. E naquele momento, de repente, apareceu um carro dourado e triunfal puxado por dois leões. Com ares majestosos, embora com olhar jovial, o mancebo guiou os corcéis selvagens. A sua direita, no carro, ia um de seus companheiros sem batina, cujos gestos lascivos e indecorosos ademanes deliciavam os outros. À esquerda, montado num burro trazido pelas jovens, marchava seu companheiro calvo e barrigudo, segurando na mão uma taça dourada constantemente servida de vinho até a borda. Na carruagem dourada e a sua volta, mulheres e homens rodopiavam, todos ornados de folhas de parreiras. À frente da procissão apoteótica andava a orquestra: lindos e bochechudos jovens tocavam flauta; ninfas vestindo túnicas batiam tambores com as pernas; graciosas beldades empunhavam tridentes; cometeiros com pés de cabra e belos rostos lascivos sopravam em curiosas conchas e chifres torneados; por último vinham os tocadores de harpa.

Ia me esquecendo, caro leitor, de que sois uma pessoa culta e bem informada e que vos seria desnecessário descrever uma bacanal ou uma festa dionisíaca. Com certeza, inúmeras vezes já contemplastes em antigos baixos-relevos, ou mesmo em inscrições arqueológicas, cenas de procissões apoteóticas em louvor ao deus Baco. E como seria de se esperar, com vosso gosto requintado e clássico, não haveríeis de vos amedrontar, mesmo que em plena noite, mesmo que em meio à deserta floresta, se os fantasmas de semelhante Bacanal aparecessem aos vossos olhos. Sentiríeis no máximo um arrepio de volúpia, um respeito estético diante da visão dessa pálida assembléia de graciosos espectros, egressos de gigantescos sarcófagos ou de esconderijos entre ruínas de antigos templos, para executar, uma vez mais, seu divino ritual; para, uma vez mais, com espírito esportivo e alegria, celebrar a marcha apoteótica do libertador divino, o salvador dos sentidos. Para, uma vez mais, divertirem-se na alegre dança do paganismo — o can-can do antigo Universo — bailando sem qualquer disfarce hipócrita, sem medo da polícia ou da moral, com o abandono selvagem dos dias de antanho, a gritar com entusiasmo:

— Evoé, Baco!

Mas infelizmente, caro leitor, o pobre pescador que tudo aquilo via não era versado em mitologia como vós; nunca estudara arqueologia; conseqüentemente, tornou-se ele presa de muito pasmo e terror, ao con- templar o Triunfador e seus acólitos surgirem de dentro das batinas dos monges. E estremecia ao observar os gestos indecentes e os pulos dos Faunos, das Bacantes e dos Sátiros, que lhe pareciam diabólicos com seus chifres e pés de cabra. Considerava aquela estranha reunião como um agrupamento de fantasmas e demônios que, através de ritos misteriosos, tentassem levar todos os cristãos à ruína. Seus cabelos se eriçavam ao ver uma das Mênades de cabelos soltos e cabeça atirada para trás, balançando-se presa apenas por um tirso, em negligente postura. E sua mente se confundia ao ver os Corribantes em louco frenesi, ferindo os próprios corpos em busca de volúpia no sofrimento. Os acordes da música, suaves e melodiosos, embora terríveis, pareciam penetrar-lhe a alma como cruciante chama. Mas, ao observar o famoso símbolo egípcio descomunal, coroado de flores e conduzido num pedestal por impudica jovem, faltou-se a visão e o pobre pescador correu de volta para o barco e escondeu-se debaixo das redes, batendo os dentes, as pernas trêmulas como se o próprio Satã o tivesse apanhado pelos calcanhares.

Pouco depois, voltavam também os três monges, embarcaram e partiram. Ao chegarem à margem oposta, o pescador conseguiu sair do esconderijo, dando a impressão de ter ficado ali entre os salgueiros aguardando a volta dos monges. Um deles, como de costume, colocou-lhe a moeda na mão e os três desapareceram rapidamente.

O pescador acreditava que sua alma estava em perigo e, para sua salvação e com o objetivo de salvaguardar também os outros bons cristãos, achou-se na obrigação de fazer um relato completo dos misteriosos acontecimentos às autoridades eclesiásticas. Como o prior do Monastério Franciscano das redondezas fosse considerado alta autoridade em matéria de exorcismo, achou melhor procurá-lo sem mais delongas. Pôs-se a caminho do monastério, ainda de madrugada, e foi logo introduzido perante Sua Excelência o Prior, que o recebeu na biblioteca, sentado numa poltrona com o capuz cobrindo-lhe parte do rosto, e que atentamente ouviu o pescador contar sua fantástica história. Quando terminou, o Superior levantou a cabeça deixando cair o capuz e o pescador reconheceu, com enorme espanto, que Sua Excelência era um dos três monges que anualmente cruzava o lago — precisamente aquele que, na noite anterior, qual um demônio celestial, guiara a carruagem dourada puxada por dois leões. Eram as mesmas e regulares e belas feições, o mesmo rosto pálido, a mesma boca de lábios suavemente curvos. E aqueles mesmos lábios agora sorriam com bondade e aquela mesma boca proferia palavras clementes e melodiosas:

— Amado filho em Nosso Senhor Jesus Cristo, acreditamos sinceramente que tenhas passado a noite em companhia do deus Baco. Tua fantástica história é a prova disso. Não que nada se tenha a dizer a respeito desse deus: ele às vezes alcança o coração do homem. Mas é bastante perigoso para os que não conseguem agüentar muita coisa; a esta categoria pareces pertencer. Aconselhamos-te daqui por diante experimentares moderadamente o líquido dourado da uva e não perturbares de novo as autoridades espirituais com fantasias de um cérebro embriagado… A propósito de tuas visões, melhor seria calares a boca, caso contrário te seriam infligidas 25 chibatadas. E agora, amado filho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vai à cozinha que o irmão- mordomo e o irmão-cozinheiro te servirão um leve repasto.

E assim o reverendo despediu o pescador, dando-lhe a bênção habitual. Quando ele, bastante confuso, dirigiu-se à cozinha e deu de cara com o irmão- mordomo e o irmão-cozinheiro, quase caiu de costas. Sim, não eram outros senão os mesmos monges que haviam acompanhado o prior em sua excursão noturna através do lago. Reconheceu um deles pela careca e pela barriga proeminente; o outro pelo sorriso sensual e pelas orelhas de bode. Mas ficou bem calado; somente anos mais tarde viria a contar sua estranha história.

Algumas crônicas antigas a respeito de lendas desse gênero localizam a cena próxima da cidade de Speyer, às margens do rio Reno.

Tradição análoga encontra-se a leste das costas da Frilândia, que revela precisamente a concepção antiga de transporte dos mortos aos páramos de Hades. Não existe em tal lenda, nem nas demais, nenhuma referência a Caronte, o timoneiro do barco, personagem que parece ter sumido inteiramente do folclore, sendo encontrado apenas em espetáculos de bonecos. Mas podemos reconhecer um personagem mitológico muito mais famoso no agente ou despachante que entra em negociação para transportar os mortos e entrega às mãos do timoneiro o habitual dinheiro da passagem. Este é em geral um pescador comum que faz o papel de Caronte. A despeito do disfarce desse despachante, imagina-se logo seu nome. Relatarei a lenda tão fielmente quanto me for possível.

Na costa leste da Frilândia, que margina o Mar do Norte, há abundantes baías usadas como portos e chamadas de fjords. No mais longínquo promontório situa-se geralmente uma cabana solitária de determinado pescador que ali vive em paz e feliz com sua família. Lá a natureza tem um aspecto melancólico. Nem mesmo o gorjeio de um pássaro se faz ouvir; apenas de vez em quando o grito de uma gaivota voando do ninho por entre montes de areia e anunciando a tempestade próxima. O monótono quebrar de ondas do mar inquieto harmoniza-se com as sombras móveis e escuras das nuvens passageiras. Mesmo os seres humanos naquela região não cantam; nunca se escuta naquelas costas melancólicas o cantarolar de alguma canção popular. Seus habitantes são sérios, honestos, práticos, orgulhosos de sua ousadia e da liberdade que herdaram de seus ancestrais. Não são imaginativos e muito pouco dados a especulações metafísicas. A pesca é seu principal meio de vida e, para ajudar, de vez em quando, fazem o transporte de algum viajante a qualquer das ilhas das proximidades.

Conta-se que, num determinado período do ano, precisamente ao meio dia, hora em que o pescador e sua família, sentados à mesa, faziam a refeição, entrou um viajante e perguntou pelo chefe da casa, pedindo-lhe alguns minutos para tratar de negócios. O pescador, depois de convidar inutilmente o visitante a participar da refeição, concedeu-lhe o pedido e ambos afastaram-se para uma pequena mesa. Não descreverei detalhadamente a aparência pessoal do estranho visitante, à maneira tediosa dos romancistas: nos bastará uma breve enumeração dos pontos principais. Era um homem pequeno, de certa idade, embora bem conservado. Por assim dizer, era um jovem de cabelos brancos; cheio de corpo, mas não corpulento; bochechas vermelhas como maçãs; olhos miúdos sempre piscando alegremente; sobre a cabeça esbranquiçada ostentava pequeno chapéu de três pontas. Sob um brilhante manto amarelo, cheio de golas, vestia uma anacrônica roupa de próspero comerciante holandês, tal como se vê nos quadros de antigamente — pequeno colete verde-periquito, paletó de flores bordadas, calças pretas e curtas, meias listradas e sapatos ornados de fivelas. As fivelas eram tão brilhantes e polidas que se tornava difícil imaginar como seu portador tinha conseguido atravessar a areia úmida da praia, conservando-as tão limpas. Sua voz era fraca e asmática, às vezes quase lacrimosa, mas suas maneiras eram graves e comedidas como convém a um comerciante holandês. No entanto, esta gravidade mais parecia forçada do que natural; contrastava marcantemente com os olhos perspicazes e inquietos e com a mal contida agitação dos braços e pernas. Que o estranho fosse um negociante holandês, parecia evidente, não apenas pelo seu aparato como pela atitude mercantil e o cuidado com que procurava tratar o negócio, da maneira mais favorável possível aos seus clientes. Como intermediário, recebera de amigos com que comerciava uma certa comissão para transportar determinado número de almas, tantas quantas coubessem num barco comum, das costas da Frilândia às Ilhas Brancas. Desejava saber se durante aquela noite poderia o pescador transportar tal carga para a mencionada ilha. Em caso positivo, estava autorizado a pagar-lhe adiantadamente a passagem, tendo fé em Cristo que o pescador pedisse um preço razoável. O negociante holandês (o que é, sem dúvida, um pleonasmo, pois todo holandês é um negociante) fez a proposta com a maior displicência, como se tratasse de um carregamento de queijos e não de almas. O pescador estremeceu ao ouvir a palavra “alma”; um arrepio percorreu-lhe as costas; percebeu logo que se tratava de almas de pessoas mortas e que o estranho holandês outra coisa não era do que o fantasma holandês que diversas vezes já incumbira seus companheiros de pesca de transportar almas mortas, pagando-os muito bem por isso.

Estes moradores do leste da Frilândia são, como tive ocasião de frisar, corajosos, saudáveis e práticos; falta-lhes aquela imaginação mórbida que nos torna tão sensíveis em relação a fantasmas e ao sobrenatural. O espanto do nosso pescador dura apenas um instante; reprimindo a sensação inicial, retoma logo a segurança e, com o objetivo de conseguir a mais alta soma possível, assume o ar de suprema indiferença. Depois de algumas confabulações, chegam ambos a um acordo e apertam-se as mãos, selando o negócio. O holandês abre então uma imunda bolsa de couro cheia de pequenas moedas de prata, das menores cunhadas na Holanda, e com essas moedinhas paga-lhe a quantia da passagem. Recomenda ao pescador que esteja pronto com o barco no local determinado perto da meia-noite, quando a lua estiver visível. O holandês despede-se de toda a família, declinando os constantes convites para a refeição; mais grave do que nunca, afasta-se rapidamente.

E eis que na hora determinada o pescador chega ao local combinado. A princípio, o barco é levemente balançado pelas ondas; mas à medida que a lua cheia vai surgindo, o pescador sente seu barco mais pesado e gradualmente afundando na água. Certificando-se, por este dado, de que os passageiros já estavam a bordo, começa ele a remar afastando-se da costa com sua carga. Com atenção extrema, nada consegue distinguir além das nuvens de vapor que se desfazem aqui e ali, entrelaçando-se, sem tomar formas definidas. Procurando escutar atentamente, nada consegue ouvir além de um fraco e indistinto sussurro. De vez em quando, uma gaivota grita e passa voando rapidamente sobre sua cabeça; ou, próximo a ele, salta d’água algum peixe que o fita com olhar vago. Suspiram os ventos noturnos e as brisas marinhas tornam-se mais frescas. Por todos os lados, água, somente água, luar e silêncio! E, silencioso como tudo a sua volta, segue o pescador que, finalmente, chega à Ilha Branca e ancora seu barco. À margem, não vê ninguém, mas ouve uma voz ofegante, asmática e lacrimosa, que reconhece como a do holandês. Ele parece estar lendo, numa monótona e peculiar entonação, uma lista de nomes. Entre os nomes, o pescador reconhece algumas das pessoas mortas naquele ano. Enquanto vai lendo a lista, o barco é gradualmente liberado de seu peso e, quando o último nome é chamado, flutua livremente, embora momentos antes estivesse preso à areia da praia. Era o sinal para o pescador de que a carga fora devidamente entregue, e ele rema tranquilamente de volta ao seu amado lar, no fjord. à presença de sua mulher e dos seus filhos…

… Apesar do hábil disfarce, procurei identificar a importante personagem mitológica que figura nesta tradição. Não é outro senão o deus Mercúrio. Hermes Psychopompos, o antigo condutor de mortos para o Hades. Sob o manto imundo e amarelo e a prosaica figura do mercador, na verdade esconde-se o mais perfeito deus dos reinos celestes, o astucioso filho de Maia. Sob o chapéu de três pontas não se nota a menor plumagem, o que poderia apontar o portador do gorro alado; nem seus estranhos sapatos com fivelas de metal sugerem as sandálias aladas. A aparência sisuda do holandês difere bastante da do ágil mercúrio, do qual se originou o nome desse deus. Mas o contraste é a tal ponto marcante que resulta revelador. Talvez sua máscara não tenha sido mero capricho. Como se sabe. Mercúrio foi o protetor dos ladrões e dos mercadores e, provavelmente, ao escolher tal disfarce e modo de ganhar a vida, tenha levado em consideração seu talento e seus antecedentes.

… E assim aconteceu que o mais esperto e o mais hábil dos deuses tenha se transformado em comerciante e, ao se adaptar tão inteiramente a seu papel, tornou-se o nec plus ultra dos mercadores: um comerciante holandês. Sua longa prática na Antigüidade, como Psychopompos, o condutor de mortos para o Hades, torna-o em especial apto a dirigir o transporte de almas mortas para a Ilha Branca, como descrevemos acima.

A Ilha Branca ocasionalmente é também chamada de Brea ou Britânia. Pretende-se com isso talvez se referir à Branca Albion, aos penhascos alvos das costas inglesas? Seria uma idéia de puro humor, se a Inglaterra fosse designada como a terra dos mortos, assim como de Inferno o reino de Plutão. Na verdade, é assim que muitos estrangeiros costumam vê-la.

Analisei a superstição popular relativa a Plutão e seus domínios, em meu ensaio sobre a lenda de Fausto. Tentei demonstrar como o antigo reino de sombras transformou-se em inferno e como seu tenebroso chefe tornou-se cada vez mais diabólico. Nem Plutão, deus das regiões inferiores, nem seu irmão Netuno, deus do mar, emigraram como os demais deuses. Mesmo depois da vitória final do Cristianismo, eles continuaram em seus domínios, como seus respectivos elementos. O que importam as fábulas tolas a seu respeito inventadas aqui na terra, se o velho Plutão permanece nas profundezas, comodamente sentado ao lado da sua Proserpina?

Já Netuno foi menos caluniado do que seu irmão Plutão. Nem o repique dos sinos das igrejas, nem o som dos órgãos puderam ofender seus ouvidos no fundo do oceano, onde se encontra tranqüilamente sentado ao lado de sua esposa de seios alvos — Anfitrite — circulando por sua corte de nereidas e tritões. Somente algumas vezes, quando algum navegante atravessa o equador, aparece ele das profundezas, brandindo o tridente, com a cabeça coroada de algas e as longas barbas prateadas a flutuar. Confere então ao neófito viajante o horrível batismo das águas, acompanhado da enfadonha brincadeira e gracejos grosseiros, para delícia dos velhos marinheiros. A brincadeira é interrompida com freqüência para expelir o fumo mascado que Netuno espalha a sua volta. Um amigo, descrevendo-me com pormenores a maneira pela qual este milagroso batismo marítimo acontece, garantiu-me que os próprios marujos, que são os que mais se divertem com os gracejos de Netuno, jamais, por um instante sequer, duvidam da existência de tal deus e, às vezes, quando diante de um grande perigo, a ele dirigem suas orações.

Como vimos. Netuno continuou rei dos domínios marítimos; e Plutão, apesar da metamorfose em Satã, continuou príncipe das regiões inferiores. Foram mais felizes que seu irmão Júpiter que, após a queda de pai Saturno, tornou-se rei do céu e, como soberano do Universo, morava no Olimpo circundado por alegre grupo de deuses e deusas e ninfas de honra, em seu reinado de alegria. Mas ao ocorrer a grande catástrofe — ocasião em que foi aclamada a Cruz, símbolo do sofrimento — o grande Crônidas fugiu; desapareceu no tumulto e na confusão da transmigração de raças. Perdemos dele todos os traços; em vão consultei crônicas antigas e velhas mulheres: nenhuma me pôde dar a menor informação que fosse sobre seu destino. Com a mesma finalidade, vasculhei bibliotecas, onde encontrei magníficos códigos ornamentados de ouro e pedras preciosas, verdadeiras odaliscas no harém da ciência. Aos cultos eunucos que para mim gentilmente destrancaram esses tesouros brilhantes, aqui deixo os habituais agradecimentos. Parece que não existe uma tradição popular de um Júpiter medieval; tudo que consegui relacionado a ele consiste numa história que me foi contada por meu amigo Niels Andersen.

“… Os casos que vou relatar”, disse Niels Andersen, “aconteceram numa ilha cuja exata localização não saberia afirmar. Desde que foi descoberta, ninguém conseguiu alcançá-la, devido às imensas montanhas de gelo formando a sua volta uma verdadeira muralha, evitando a aproximação da ilha. Conseguiu apenas pisar seu solo a tripulação de um navio de pesca que uma tempestade jogara para o norte. Daquela época para cá, passaram-se quase cem anos. Quando os marinheiros, num pequeno barco, conseguiram aportar na ilha, encontraram-na deserta e selvagem. Sobre as areias movediças, tufos de plantas balançavam tristemente; de vez em quando, viam- se abetos atrofiados e secos arbustos. Os marinheiros viram uma infinidade de coelhos saltitantes e por isso batizaram-na de Ilha dos Coelhos. Apenas uma miserável cabana evidenciava a presença de algum ser humano. No entanto, depararam com um velho, velhíssimo, miseravelmente vestido com uma indumentária de pele de coelho muito mal costurada. Sentava-se sobre um banco de pedra em frente à lareira, tentando aquecer junto ao fogo cintilante dos gravetos as mãos enrugadas e os trêmulos joelhos. A sua direita, via-se um imenso pássaro, evidentemente uma águia bastante maltratada, já quase sem plumagem a não ser as longas penas eriçadas das asas, o que lhe dava um aspecto grotesco e hediondo. À esquerda do velho, deitada no chão, uma enorme cabra sem pêlos bastante velha, se bem que suas tetas tivessem bicos róseos e estivessem cheias de leite.

Entre os marujos, muitos eram gregos; um deles, sem imaginar que suas palavras pudessem ser compreendidas pelo velho morador da cabana, dirigiu- se em sua língua natal a um companheiro:

— Este velho ou é um fantasma ou um demônio maligno.

A estas palavras, o ancião levantou-se subitamente e, para surpresa dos marujos, assumiu uma postura imponente. A despeito da avançada idade, estava de pé numa postura bem ereta, com o olhar autoritário, numa altivez real e com a cabeça quase tocando as vigas da cabana. As feições, mesmo enrugadas e curtidas, conservavam traços de beleza; eram nobres e bem proporcionadas. Algumas mechas de cabelos prateados caíam-lhe pela testa franzida. Os olhos tinham um brilho fixo, mas de vez em quando cintilavam com muita perspicácia. De sua boca ouviram-se palavras melodiosas e sonoras em grego arcaico:

— Exagerais, meus jovens; não sou um fantasma. Nem um demônio maligno; sou apenas um ancião que conheceu dias melhores. E vós, quem sois?

Os marinheiros narraram o acidente do qual foram vítimas e indagaram a respeito da ilha. As informações, no entanto, foram poucas. Contou-lhes o velho que, desde tempos imemoriais, habitava a ilha cujas muralhas de gelo asseguravam-lhe refúgio contra inexoráveis inimigos. Sua subsistência devia ele aos coelhos; e todos os anos, quando os icebergs flutuantes se imobilizavam, grupos de selvagens se aproximavam da ilha e a eles o ancião vendia peles de coelho e recebia em troca artigos indispensáveis. As baleias, que às vezes nadavam nas proximidades da ilha, constituíam sua companhia preferida. Mas sentia prazer ao ouvir a língua nativa, pois também ele era grego. Pediu aos conterrâneos um relato sobre as condições atuais da Grécia. Causou-lhe muita satisfação que nas cidades gregas não sobrevivesse o símbolo da cruz; mas que, em vez dele, tivesse sido implantado o do machado foi algo que não lhe agradou. Por estranho que parecesse, nenhum dos marinheiros conhecia os nomes das cidades pelas quais perguntava e que deviam ter florescido em sua época, segundo ele dizia. Da mesma maneira, o velho desconhecia nomes de cidades e vilas gregas mencionadas pelos marinheiros.

Balançava a cabeça tristemente e os marinheiros entreolharam-se perplexos. Observaram que ele sabia exatamente as localidades e peculiaridades geográficas da Grécia; descrevia com tal vivacidade e precisão as baías, penínsulas, montanhas, montes e as mínimas elevações, que a ignorância dos lugares surpreendia ainda mais os marujos. Com interesse especial, com certa ansiedade mesmo, perguntou-lhes a respeito de um determinado templo antigo, o qual — assegurou-lhes — fora em sua época o mais belo de toda a Grécia; mas nenhum deles conhecia o nome que o ancião pronunciava com imensa ternura. Por fim, quando o velho descreveu a localização do templo com todas as minúcias, um jovem marinheiro, pela descrição, reconheceu o lugar.

A cidade onde nascera, disse o jovem, situava-se próxima daquele local e, quando menino, diversas vezes conduzira até lá os porcos de seu pai. Foram encontradas naquela região antigas ruínas que indicavam um passado grandioso, magnífico. Só restaram poucas e enormes colunas de mármore; algumas lisas, sem adornos; outras ornamentadas com pedras quadradas. Das fendas de alvenaria desciam suculentas videiras e campânulas vermelhas. Outras pilastras — algumas de mármore rosado — jaziam despedaçadas no chão, e magníficas pedras em mármore, ornamentadas com belas esculturas representando folhagens e flores, estavam cobertas de gramas e trepadeiras. Semi-enterrados, apareciam imensos blocos de mármore, alguns quadrados como os que são utilizados em paredes; outros triangulares como se tivessem sido parte de um teto. Elevava-se sobre eles uma copada figueira selvagem, brotando por entre as ruínas. À sombra daquela árvore, estranhas formas esculpidas nos imensos blocos de mármore. Pareciam representações pictóricas de tipos de esporte e combates, e que agradavam à vista; no entanto, achavam-se bastante danificadas pela erosão e cobertas de musgo e hera. Ele perguntara a seu pai sobre o significado das pilastras e esculturas e seu pai lhe dissera serem ruínas do antigo templo pagão que, em épocas remotas, fora a moradia de um perverso deus que ali levara uma vida de depravação, incesto e estranhos vícios. Apesar disso, os pagãos ignorantes costumavam matar centenas de bois em sua honra, existindo ainda o sagrado bloco de mármore onde depositavam o sangue das vítimas. Na verdade, era a peça que costumavam usar como recipiente para os restos com que alimentavam os porcos.

Assim falou o jovem marinheiro. O velho suspirou profundamente, revelando uma profunda angústia. Cambaleando, jogou-se no banco de pedra e, cobrindo o rosto com as mãos, chorou como uma criança. A enorme ave depenada soltou um grito tenebroso e, batendo as asas, ameaçou os estranhos com suas garras e bico. A velha cabra lambia a mão do seu dono e balia chorosamente, como se o quisesse consolar.

Isto tudo resultou num verdadeiro terror que se apossou dos marinheiros; saíram eles às pressas da cabana e sentiram-se aliviados quando não mais ouviram os soluços do ancião, os gritos da ave e os balidos da cabra. Salvos a bordo da embarcação, contaram a aventura em questão.

Na tripulação havia um russo culto, professor de filosofia de uma universidade de Kazan, que considerou o fato de grande importância. Encostou o indicador ao lado do nariz e garantiu aos marinheiros que aquele ancião da ilha seria, sem dúvida, o antigo deus Júpiter, filho de Saturno e de Réa. A ave a seu lado era evidentemente a águia que carregava terríveis raios em suas garras. E a velha cabra provavelmente seria Atléia, a velha ama de Júpiter que o nutrira em Creta e que agora, no exílio, continuava alimentando- o com seu leite.”

Esta foi a história que me contou Niels Andersen; confesso que ela me encheu a alma de profunda melancolia. A decadência vem minando secretamente tudo o que é grandioso no Universo; os próprios deuses não conseguem evitar sucumbir à mesma e miserável sorte. A lei férrea do destino assim o deseja e mesmo os maiores entre os imortais devem, submissos, baixar a cabeça. Aquele que foi cantado por Homero e esculpido por Fídias em ouro e marfim; aquele que fazia a terra tremer com seu olhar; ele, o amante de Leda, Alcmena, Semele, Danae, Calisto, Io, Leto. Europa etc… — mesmo ele fora coagido a se esconder atrás das montanhas geladas do Pólo Norte e, a fim de prolongar sua existência miserável, obrigado a negociar peles de coelho como um vulgar habitante da Savóia.

Não, não coloco em dúvida a existência de pessoas que possam sentir um prazer sinistro com tal espetáculo. São, quem sabe, descendentes daqueles infortunados bois que, em hecatombe, eram sacrificados nos altares de Júpiter. Pois rejubilem-se! O sangue de seus ancestrais foi vingado, pobres mártires da superstição. Mas nós que não somos presas de qualquer ressentimento hereditário, comovemo-nos ao contemplar a decadência da grandeza e não podemos esconder nossa mais respeitosa compaixão.