Alguém pediu charutos. Instintivamente, olhamos todos para a pessoa que falara. Brisbane era um homem de trinta e cinco anos, notável por aquelas qualidades que geralmente atraem a atenção dos homens. Era forte. As proporções exteriores de sua figura não apresentavam nada de extraordinário apesar de ser de altura acima do vulgar. Tinha mais de seis pés de altura, e era razoavelmente largo de ombros; não parecia gordo mas também não era magro; a cabeça pequena assentava-se sobre um pescoço forte e vigoroso; as mãos grandes e musculosas tinham uma habilidade notável em partir nozes sem o auxilio do respectivo instrumento, e, ao vê-lo de perfil, ninguém podia deixar de notar a extraordinária largura de suas mangas e a grande largura de seu tórax. Era um desses homens de quem vulgarmente se diz que as aparências enganam; quer dizer, apesar de forte, era, na realidade, muito mais forte ainda do que parecia. Com respeito às feições, pouco tenho a dizer. A cabeça era pequena, tinha pouco cabelo, olhos azuis, nariz grande, pequeno bigode e queixo quadrado. Toda gente conhece Brisbane, e, quando pediu um charuto, todos olharam para ele.
— É uma coisa singular – disse Brisbane. Deixaram todos de falar…
Tenho viajado muito, e, como preciso atravessar o Atlântico bastantes vezes, tenho cá minhas preferências. Muita gente as tem. já vi um homem esperar, num bar da Broadway, durante três quartos de hora até que passasse O carro que preferia. Creio que o dono do bar fazia um terço de seu rendimento com a preferência daquele homem.
Tenho o hábito de esperar por determinados navios, quando tenho de atravessar aquele tanque de patos. Será uma asneira, mas nunca tive uma travessia tão má, a não ser uma vez. Recordo-me muito bem: foi numa manhã quente de junho, e os empregados da alfândega, que andavam de um lado para outro, à espera de um vapor que já largara da Quarantine (Lazareto), tinham um aspecto notavelmente sombrio e pensativo.
Eu não levava muita bagagem – nunca a tenho muita. Misturei-me com a multidão de passageiros, moços de frete, e daqueles maçadores vestidos de azul, com botões de latão, que parecem nascer como cogumelos do convés dum navio atracado, para impor violentamente os seus serviços desnecessários ao passageiro independente. já tenho muitas vezes observado, com certo interesse, as evoluções espontâneas destes diabos. Quando se chega, ninguém os vê; cinco minutos depois do piloto ter dito: Pra vante! eles, ou, pelo menos, os casacos azuis e os botões de latão desaparecem do convés e do portaló tão subitamente como se tivessem sido tragados pelo inferno. Mas, no momento da partida, lá estão eles, barbeados, vestidos de azul e esfomeados por gorjetas. Apressei-me a ir para bordo. O Kamtschatka era um de meus navios favoritos. Digo, era, porque deixou de o ser. Não posso conceber coisa alguma que me obrigue a viajar outra vez nele. Sim, já sei o que vão dizer. Que tem uma marcha muito rápida, que é bastante alto da proa para não se encharcar, e que a maior parte dos beliches de baixo são duplos. Tem muitas vantagens, mas não torno a viajar nele. Desculpem a digressão. Fui para bordo. Chamei por um criado, cujo nariz vermelho e cujas suíças ainda mais vermelhas me eram igualmente familiares.
— Camarote 105, beliche de baixo – disse ele, no tom decidido de um homem que faz tanto caso em atravessar o Atlântico como de beber um coquetel de uísque no Demoníaco.
O criado pegou-me na mala, no casaco e na manta. Nunca me esquecerei da expressão do seu rosto. Não que ele ficasse pálido. Os teólogos eminentes asseveram que nem os milagres podem alterar o curso da natureza. Não hesito em dizer que não ficou pálido, mas pela sua expressão pensei que ia chorar ou espirrar ou deixar cair a mala. Como esta continha duas garrafas de velho Xerez, muito bom, que me tinham sido dadas pelo meu velho amigo Quigginson Van Pickyns, senti-me sobressaltado. Mas o criado não fez nenhuma dessas coisas.
— Diabo me levem!… – disse ele em voz baixa, e pôs-se a caminhar na minha frente. Supus que o meu Hermes, que assim me conduzia para as regiões inferiores, tivesse
tomado a sua pinga, mas nada disse, e segui-o. O camarote 105 ficava a bombordo, bastante à popa. Não tinha nada de notável. O beliche de baixo, como a maior parte dos do Kamtschatka eram duplos. Havia muito espaço: tinha o lavatório do costume, bom para dar uma idéia de luxo aos índios da América do Norte; havia os inúteis porta-escovas do costume, nos quais é mais fácil pendurar um grande chapéu de chuva do que uma escova de dentes vulgar de Lineu. Sobre os poucos convidativos colchões, estavam cuidadosamente dobrados aqueles lençóis que um grande humorista moderno comparou muito bem a pastéis de massa frios. A questão das toalhas ficava inteiramente a cargo da imaginação. As garrafas de vinho estavam cheias dum líquido transparente e ligeiramente acastanhado, e exalavam um cheiro mais intenso que a cor do líquido, mas muito menos agradável, subindo às narinas como uma longínqua e nauseabunda reminiscência de óleo de máquinas. Cortinas duma cor triste fechavam quase completamente o beliche de cima. A luz baça de junho iluminava fracamente aquela cena desoladora. Puf! Que má impressão tenho daquele camarote!
O criado pôs minha bagagem no chão e olhou para mim como se quisesse ir-se embora – provavelmente à procura de mais passageiros e mais gorjetas. É sempre bom estar em boas relações com esses funcionários, e por isso lhe dei imediatamente algum dinheiro.
— Farei todo o possível para que o senhor seja bem servido – observou ele, metendo o dinheiro na algibeira.
Contudo, havia na sua voz um tom duvidoso que me surpreendeu. Naturalmente, a sua tabela de gorjetas tinha subido e não se contentava. não se considerava satisfeito; apesar disso, quis-me antes parecer que ele talvez tivesse tomado um copinho a mais. Não tinha razão, e fiz àquele homem uma injustiça.
Nada de especial aconteceu, durante aquele dia. Largamos do cais pontualmente e foi muito agradável começar a navegar, porque o dia estava quente e abafado e o movimento do vapor produzia uma brisa muito fresca. Todos sabem o que é o primeiro dia de viagem no mar. Os passageiros passeiam pelo convés, olham uns para os outros e, de vez em quando, encontram-se com gente conhecida cuja presença a bordo não suspeitavam. Há a incerteza do costume com respeito à excelência da comida, até que as duas primeiras tirem todas as dúvidas; há a incerteza do costume a respeito do tempo, até que o navio dobre a Ilha do Fogo. As mesas, ao princípio, estão cheias e, depois, se despovoam subitamente. Pessoas pálidas abandonam repentinamente os seus lugares e precipitam-se para as portas, e os viajantes experimentados respiram mais livre mente, quando o vizinho enjoado lhes foge do lado, deixando-lhes mais lugar para os cotovelos e um direito ilimitado sobre a mostarda.
Todas as travessias do Atlântico se parecem umas com as outras. E nós, que as fazemos muitas vezes, não viajamos em busca de novidades. Baleias são sempre objetos dignos de interesse, não há dúvida, mas, apesar disso, as baleias parecem-se todas entre si e raramente se vê um iceberg suficientemente de perto. Para a maior parte, o momento mais agradável do dia, a bordo dum transatlântico, é quando damos o último passeio no tombadilho, fumamos o nosso último charuto, e, tendo conseguido fatigar-nos, nos sentimos em liberdade de nos irmos sossegadamente deitar. Na primeira noite de viagem, senti-me muito preguiçoso e fui deitar-me no 105, mais cedo do que tenho por costume. Quando entrei, fiquei muito surpreendido ao ver que ia ter um companheiro. Uma mala muito semelhante à minha estava no canto oposto, e, no beliche de cima, tinha sido colocada uma manta, cuidadosamente dobrada, uma bengala e um chapéu de chuva. Esperava ficar só, e estava desapontado, mas desejei saber quem seria o meu companheiro e resolvi espreitá-lo.
Pouco tempo depois de me haver deitado, entrou ele.?Era, pelo que podia ver, um homem muito alto, muito pálido, de cabelo e barbas cor de estopa e com uns olhos de um castanho muito desbotado. Tinha, pensei eu, um ar de elegância duvidosa; como aqueles homens que se encontram em Wall Street, sem que se saiba precisamente o que lá fazem – que freqüentam o Café Anglais, parecem estar sempre sós e que bebem muita champanha; encontram-se também nas corridas de cavalos, sem que pareçam estar ali fazendo alguma coisa. Têm um modo estranho de vestir, bastante afetado, e são um pouco excêntricos. Há sempre três ou quatro dessa espécie a bordo dos transatlânticos. Resolvi-me a não tomar conhecimento com ele e adormeci dizendo comigo que trataria de lhe estudar os hábitos para me esquivar a quaisquer relações. Se ele se levantasse cedo. eu me levantaria tarde; se deitasse tarde, deitar-me-ia cedo. Não queria conhecê-lo. Se uma vez travamos conhecimento com gente desta espécie, nunca mais nos largam. Pobre diabo! Não era preciso incomodar-me a tomar mais decisões a seu respeito, porque nunca mais o tomei a ver, depois dessa primeira noite no 105.
Estava dormindo profundamente, quando fui acordado por um grande estrondo. A julgar pelo , o meu companheiro devia ter saltado dum pulo do seu beliche para o chão. Senti-o mexer na fechadura da Porta, que se abriu imediatamente. Depois, ouvi os seus Passos correndo a toda pressa pelo corredor, enquanto deixava a porta aberta atrás de si. O navio balançava bastante, e esperava ouvi-lo tropeçar ou cair, mas ele corria como se fosse livrar o pai da forca. A porta girou nos gonzos, com o movimento do navio, e o barulho incomodou-me. Levantei-me, fechei-a, e voltei, às apalpadelas, na escuridão, para o meu beliche. Tornei a dormir, mas não tenho a mínima idéia de quanto tempo dormi.
Quando acordei, ainda era completamente escuro, mas senti uma sensação desagradável de frio e pareceu-me que o ar estava úmido. Conhecem o ar particular dum camarote, depois de ter sido molhado com água do mar. Cobri-me melhor que pude e tornei a adormecer, ruminando queixas que havia de fazer no dia seguinte e pensando nas palavras mais violentas que havia de empregar. julguei ouvir o meu companheiro, ao virar- se no beliche de cima. Provavelmente, tinha voltado enquanto eu dormia. Uma vez, pareceu-me ouvi-lo gemer, e julguei que estivesse enjoado. E isso é particularmente desagradável, quando se está por baixo. Apesar disso, continuei a dormir até de madrugada.
O navio balouçava muito, muito mais que na noite antecedente, e a luz acinzentada que vinha pela vigia mudava de cor conforme o movimento do navio e fazia inclinar para o céu ou para o mar. Estava muito frio – demasiado, para o mês de junho. Voltei a cabeça, olhei para a vigia e vi, com espanto, que estava aberta de par em par e presa atrás. julgo ter praguejado em voz alta. Depois, levantei-me e fechei-a. Quando voltava, olhei para o beliche de cima. As cortinas estavam completamente corridas; com certeza meu companheiro tinha sentido tanto frio como eu. Veio-me a idéia de que já tinha dormido bastante. O camarote estava pouco confortável, conquanto, o que era extraordinário, não sentisse a umidade que me tinha acordado durante a noite. O meu companheiro dormia ainda – bela ocasião de o evitar, e por isso vesti-me à pressa e fui para o tombadilho.
O dia estava quente e enevoado, com um cheiro oleoso na água. Eram sete horas, quando saí – muito mais tarde do que tinha imaginado. Encontrei o médico, que estava tomando a sua primeira pitada de ar matutino. Era um rapaz do oeste da Irlanda – um rapagão de cabelo preto e olhos azuis, já começando a engordar; tinha um ar bonacheirão e saudável, que o tornava bastante atraente.?— Bela manhã! – observei eu, para encetar a conversação.?— Sim – disse ele, olhando-me com interesse; é, e não é. Não estou lá muito de acordo. — Sim… não será lá muito boa – retruquei.?— É o que chamo um dia estúpido – volveu o médico.?— Esteve bastante frio, esta noite – continuei. – Naturalmente, foi por a vigia ter ficado aberta. Não o tinha notado, quando me deitei. O camarote também estava úmido. — Úmido! exclamou ele. – Em qual está o senhor??— No 105…
Com grande espanto meu, o médico estremeceu visivelmente e olhou para mim admirado.
— O que é? perguntei admirado.
— Nada. . . respondeu ele – É que, nestas últimas três viagens, todos se têm queixado desse beliche.
— Também me vou queixar, – respondi – Não foi bem arejado. É uma vergonha!
— Não me parece que isso tenha remédio – respondeu o médico – Tenho idéia de que aí há qualquer coisa, mas não me compete assustar os passageiros.
— Não tenha medo de me assustar. Suporto bem a umidade. Se me constipar, irei ter consigo.
Ofereci um charuto ao doutor, que o examinou demoradamente. — Não é tanto por causa da umidade – explicou ele.
Apesar disso, espero que não se dê mal. Não tem um companheiro??— Tenho, sim; um diabo que sai a correr no meia da noite e deixa a porta aberta.
O doutor olhou outra vez para mim, dum modo esquisito. Depois, acendeu o charuto e ficou sério.
— Tornou a voltar? – perguntou, daí a pouco.
— Tornou. Estava dormindo, mas acordei e vi-o mexer-se. Depois, senti frio outra vez. Esta manhã, encontrei a vigia aberta.
— Olhe, – disse o doutor, sossegadamente – não me importo muito com este navio. Não me importo absolutamente nada com sua reputação. Vou dizer-lhe o que vamos fazer. Tenho um bom camarote, lá em cima. Venha partilhá-lo comigo, apesar de nunca o ter visto mais gordo.
Fiquei muito surpreendido com esta proposta. Não podia imaginar donde lhe vinha este súbito interesse pelo meu bem-estar. Contudo, a maneira como falava do navio era singular.
— É muito amável, doutor, – respondi. – Mas continuo a pensar que o camarote se podia arejar ou limpar, ou fazer-se qualquer coisa. Por que é que não gosta do navio?
— Nós, os médicos, não costumamos ser supersticiosos, mas o mar nos faz assim. Não o quero assustar nem sobressaltar, mas, se quiser- seguir o meu conselho, mude-se para o meu camarote. Antes queria vê-lo pela borda afora do que saber que o senhor ou outro qualquer iam dormir no 105.
— Deus do céu! Por quê??— Porque, nas três últimas viagens, as pessoas que lá dormiram foram pela borda afora – respondeu ele, com modo grave.?Confesso que isto era para espantar e muito desagradável. Olhei fixamente para o médico, para ver se ele estava troçando de mim, mas tinha um ar absolutamente sério. Agradeci-lhe calorosamente a oferta, mas disse-lhe que tencionava ser a exceção à regra pela qual todo o que dormisse naquele camarote iria pela borda afora. Não respondeu, mas continuou cada vez mais sério e insinuou que, antes de acabarmos a viagem, havia provavelmente de reconsiderar. Entretanto, fomos almoçar; poucos passageiros lá estavam. Notei que um ou dois oficiais que almoçavam conosco estavam preocupados. Depois do almoço, fui ao camarote buscar um livro. As cortinas do beliche de cima continuavam completamente corridas. Não se ouvia uma palavra. Certamente, meu companheiro continuava dormindo.
Quando sai, encontrei o criado ao cargo do qual eu estava. Disse-me em voz baixa que o capitão desejava falar-me. E safou-se pelo corredor, como se desejasse evitar qualquer pergunta. Dirigi-me para o camarote do capitão, onde o encontrei à minha espera.
— Senhor, – disse ele, – quero pedir-lhe um favor. Respondi que faria tudo para lhe ser agradável.
— O seu companheiro desapareceu, – disse ele – Sabe-se que deitou cedo, a noite passada. Notou alguma coisa extraordinária nos seus modos?
Vindo esta pergunta, como veio, confirmar exatamente os receios que o médico tinha mostrado havia meia hora, ela assustou-me.
— Não quer com isso dizer – que ele foi pela borda afora? – perguntei. — Receio que sim – respondeu o capitão.
Isso é a coisa mais extraordinária comecei. — Por quê? – perguntou ele.?— Então é ele o quarto, – respondi.
Em resposta a outra pergunta do capitão, expliquei, sem mencionar o médico, que já tinha ouvido a história do 105.
Pareceu ficar bastante encabulado ao saber que eu a conhecia. Contei-lhe o que se tinha passado durante a noite.
— O que o senhor me diz – respondeu, – coincide quase exatamente com o que me disseram os companheiros de dois dos outros três. Saltam da cama e correm pelo corredor. Dois deles foram vistos ir pela borda afora, pela vigia. Paramos e lançamos os escaleres ao mar, mas não foram encontrados. Ninguém, contudo, viu ou sentiu o homem que se perdeu ontem à noite, se ele está realmente perdido. O criado, que é muito supersticioso, talvez esperando que tivesse acontecido qualquer coisa, foi procurá-lo, esta manhã, e encontrou o seu beliche vazio, as roupas espalhadas, como as tinha deixado. O criado era a única pessoa a bordo que o conhecia, e tem andado a procurá-lo Por toda a parte. Desapareceu! Agora, quero pedir-lhe o favor de não mencionar nada disto aos outros passageiros; não quero que o navio tome mau nome, e nada se agarra tanto a um navio como histórias de suicídios. Pode escolher qualquer dos camarotes dos oficiais que preferir, incluindo o meu, até o fim da viagem. É isto razoável?
— Bastante, , disse eu. – E estou-lhe muito obrigado. Mas, desde que me encontro só e tenho o camarote somente para mim, prefiro não me mudar. Se o criado tirar as coisas daquele desgraçado, preferirei ficar onde estou. Nada direi a respeito deste assunto, e julgo que lhe posso prometer que não seguirei o exemplo do meu companheiro.
O capitão procurou dissimular, dissuadir-me do meu propósito, mas eu antes queria ter um camarote só para mim do que ser companheiro de qualquer dos oficiais de bordo. Não sei se procedi com juízo, mas, se tivesse tomado o seu conselho, não teria mais nada a contar. Haveria a desagradável coincidência de se terem dado diversos suicídios dos homens que tinham dormido no mesmo camarote, mas isso teria sido tudo.
Entretanto, não foi este o fim da questão. Tinha-me resolvido obstinadamente a não me deixar intimidar por aquelas histórias, e cheguei, mesmo, a discutir o assunto com o capitão. O camarote tinha qualquer coisa. Era bastante úmido. A vigia tinha sido aberta à noite passada. O meu companheiro podia ter adoecido, quando veio para bordo e ficado delirante depois de se ter deitado. Podia, mesmo, estar escondido a bordo e ser encontrado mais tarde. O camarote precisava ser arejado, e o fecho da vigia consertado. Se o capitão desse licença, eu trataria de mandar fazer já o que julgasse necessário.
— Já se sabe que o senhor tem o direito de ficar onde quiser – respondeu ele, um pouco de mau modo. – Mas preferia que o senhor saísse e me deixasse fechar o camarote para acabar com isto.
Eu não via as coisas assim, e deixei o capitão, depois de lhe prometer que não diria nada a respeito do desaparecimento de meu companheiro. Este não tinha conhecidos a bordo, e a sua falta não foi notada durante o dia. A tarde, encontrei o doutor, que me perguntou se já tinha mudado de parecer. Disse-lhe que não.
— Há de fazê-lo muito em breve – observou ele, gravemente – Jogamos o whist durante a noite e fui para a cama tarde. Confesso, agora, que senti uma sensação desagradável ao entrar no camarote. Não podia deixar de pensar no homem alto, que tinha visto na noite antecedente, agora morto, afogado, boiando no mar agitado, 200 ou 300 milhas à popa. O seu rosto aparecia-me distintamente, enquanto me despia, e cheguei, mesmo, a afastar as cortinas de cima, como para me persuadir que ele efetivamente não estava lá. Fechei a chave a porta do camarote. De repente, notei que a vigia estava aberta e presa atrás. Era mais do que eu podia suportar! Vesti apressadamente o meu robe-de-chambre, e sai à procura do Roberto, o criado do camarote. Recordo-me que estava deveras zangado, e, quando o encontrei, puxei violentamente até a vigia aberta.
— Para que diabo deixa você a vigia aberta todas as noites, meu patife? Não sabe que, se o navio adernasse e água começasse a entrar, nem dez homens seriam ca- pazes de a fechar? Vou fazer queixa ao capitão, meu patife, por pôr o navio em perigo!
Estava deveras zangado. O homem começou a tremer, empalideceu e começou a fechar o grande vidro, com pegados fechos de latão.
Por que não responde? – perguntei, com aspereza.
Não há ninguém a bordo que possa conservar esta vigia fechada, de noite… – gaguejou Roberto – O senhor mesmo pode experimentar! Não fico mais a bordo deste navio, isso é que não fico! Mas, se eu fosse o senhor, iria dormir com o cirurgião, lá isso é que igual. Olhe cá, isto está bem fechado? Experimente o senhor a vigia, se ela se move sequer uma polegada!
Experimentei a vigia e vi que estava perfeitamente cerrada.
— Pois bem – continuou Roberto, com voz triunfante,?Perca eu minha reputação de criado de primeira classe se em meia hora ela não estiver aberta outra vez. E atada atrás, senhor, isso é que é terrível, atada atrás!… Examinei o parafuso e a porca.
— Se ela se abrir durante a noite, Roberto, dou-lhe uma libra. Não é possível, pode ir-se embora.
— Uma libra, disse o senhor? Muito bem. Obrigado, senhor. Muito boa noite, estimo que durma bem.
Roberto safou-se, encantado por se ver livre. Já se sabe que pensei que ele procurava desculpar a sua negligência, com uma história tola, para me assustar, e não o acreditei. A conseqüência disto foi que ele apanhou a libra e que passei uma noite muito desagradável.
Meti-me na cama e, cinco minutos depois de me haver enrolado nos lençóis, o inexorável Roberto apagou a luz, que estava acesa por detrás da bandeira, ao pé da porta.
Conservei-me tranqüilo na escuridão. tentando adormecer, mas depressa vi que isso era impossível. Tinha sentido algum prazer em zangar-me com o criado, e isto havia feito desaparecer a sensação desagradável, que sentira a princípio, quando pensava no afogado que tinha sido meu companheiro de quarto, mas já não tinha sono e conservei-me acordado durante algum tempo, olhando, de vez em quando, para a vigia, que podia ver de onde estava, e que, na escuridão, parecia um prato de sopa um pouco luminoso, suspenso nas trevas. julgo que estive assim durante uma hora, e ia adormecer, quando fui despertado por uma corrente de ar frio e por sentir distintamente a espuma do mar bater- me na cara. Pus-me em pé de repente, e, não tendo dado desconto na escuridão, ao balanço do navio, fui violentamente arremessado através do camarote sobre o sofá que estava colocado por baixo da vigia. Levantei-me imediatamente e pus-me de joelhos em cima dele. A vigia estava outra vez aberta, e amarrada atrás.
Ora, isto são fatos! Estava completamente acordado, quando me levantei, e mesmo se o não tivesse teria acordado com a queda que dei. Além disso, esfolei muito os coto- velos e joelhos e, na manhã seguinte, as contusões tê-lo-iam provado, se por acaso eu estivesse em dúvida.
A vigia que estava completamente aberta e presa atrás, coisa tão extraordinária que me lembro muito bem ter sentido mais espanto do que medo quando dei por isso. Fechei imediatamente o vidro e atarrachei o fecho com toda a minha, força. Fazia muito escuro, no camarote. Refleti que a vigia se tinha aberto pouco mais ou menos uma hora depois que Roberto a fechara na minha presença, e resolvi observar se ela se tornava a abrir. Aqueles fechos de latão são muito pesados e nada fáceis de mover; não podia acreditar que o gonzo se tivesse movido com o estremecer do parafuso. Fiquei a olhar através do vidro grosso para as faixas, alternadamente brancas e cinzentas, do mar que espumava ao lado do navio.
Devia estar ali durante um quarto de hora.
De repente, quando me pus em pé, ouvi distintamente alguma coisa mover-se, atrás de mim, num dos beliches, e, um instante depois, quando instintivamente me virava para olhar – apesar de não poder ver na escuridão – senti um gemido muito fraco. Dei um pulo através do camarote, e afastei as cortinas do beliche de cima, metendo as mãos dentro para ver se estaria lá alguém. Estava lá alguém, efetivamente.?Lembro-me que a sensação que tive, quando estendi as mãos, foi a de as ter mergulhado no ar duma cave úmida. E. detrás da cortina, veio uma lufada de vento, que cheirava horrivelmente a água salgada que se tivesse estagnado. Agarrei em qualquer coisa que tinha a forma dum braço humano, mas liso, molhado e frio de gelo. De repente, porém, quando puxava, a criatura saltou violentamente sobre mim, numa massa peganhosa e lamacenta, segundo me pareceu, pesada e úmida, mas dotada duma espécie de força sobrenatural. Cambaleei e, num instante, a porta abriu-se e a coisa saiu. Não tive tempo de me assustar e, levantando-me rapidamente, voltei pela porta e corri atrás daquilo com toda a minha velocidade, mas já era tarde. Dez varas adiante de mim, pude ver – tenho a certeza que vi! – uma sombra escura movendo-se na luz incerta do corredor, tão depressa como a sombra dum cavalo ligeiro projetada numa noite escura pela lanterna. Mas num instante desapareceu e dei comigo agarrado ao corrimão que volta do corredor para a escotilha. Tinha os cabelos em pé e um suor frio corria-me pela cara. Estava muito assustado, do que não me envergonho nada.
Apesar disso, duvidava ainda dos meus sentidos e tentei raciocinar friamente. Era absurdo, pensava eu. O coelho Welsh , que comera ao jantar, tinha-me feito mal. Tinha sido um pesadelo. Voltei para o camarote e entrei nele com esforço. Cheirava tudo a água salgada que se tivesse estagnado como quando acordara na noite antecedente. Tive que empregar toda a minha força moral para entrar e procurar, às apalpadelas, uma caixa de fósforos de cera. Quando acendi uma lanterna portátil, que ler, depois de se estava outra vez aberta e começou a apoderar-se de mim uma espécie de terror que nunca tive e que não desejo tornar a sentir. Todavia, comecei a examinar o beliche de cima, esperando encontrá-lo cheio de água do mar.
Mas fiquei desapontado. A cama tinha sido ocupada e o cheiro do mar era muito forte; mas as roupas estavam perfeitamente secas. Pensei que Roberto não tivera ânimo para fazer a cama, depois do acidente da noite passada, tudo tinha sido um sonho horroroso! Abri as cortinas o mais possível e examinei tudo cuidadosamente. Estava bem enxuto. Mas a vigia se achava outra vez aberta.
Numa espécie de profundo terror, tornei a fechá-la e, metendo uma bengala muito forte na argola do parafuso, apertei-o com toda a força até que ele começou a entortar. Depois, pendurei a lanterna no veludo encarnado, à cabeceira da cama, e sentei-me para tentar refazer-me do susto, se pudesse. Fiquei ali toda a noite, sem poder pensar em descansar, sem quase poder pensar. Mas a vigia continuou fechada, e eu não cria que agora se pudesse abrir sem uma força extraordinária.
A manhã despontou, por fim, e vesti-me vagarosamente, pensando era tudo o que tinha acontecido durante a noite. Estava um belo dia, e fui para o tombadilho, satisfeito por ir para o sol límpido da manhã e por respirar a brisa que vinha da água azul, tão diferente do cheiro insalubre e estagnado que havia no camarote. Instintivamente, dirigi-me para a popa, ao camarote do médico. Ele lá estava, de cachimbo na boca, gozando o ar da manhã, exatamente como no dia antecedente.
— Bons dias! – cumprimentou, tranqüilamente, mas, olhando para mim com evidente curiosidade.
— Doutor, o senhor tinha razão, – disse eu. – Há, efetivamente, qualquer coisa naquele camarote.
— Bem me parecia que havia de mudar de opinião! volveu ele, em tom triunfante. – Passou mal a noite, não é verdade? Quer que lhe dê um cordial? Tenho uma receita esplêndida!
— Não, obrigado, – agradeci. – Mas gostaria de lhe contar o que aconteceu.?Tentei, em seguida, explicar, tão claramente quanto possível o que se tinha passado, não escondendo que levara um susto como nunca apanhara na minha vida. Demorei-me mais particulamente no caso da vigia, que era um fato que eu podia afirmar, mesmo que o resto tivesse sido ilusão.
Havia-a fechado duas vezes, durante a noite, e, da segunda vez, tinha até torcido o fecho, ao apertá-lo com a bengala. Tenho idéia de que insisti muito neste ponto.
— O senhor parece pensar que duvido da sua história, – disse o doutor, sorrindo-se, ao ouvir a descrição minuciosa do estado da vigia. – Não tenho a menor dúvida. Tomo a fazer- lhe o mesmo convite: traga as suas malas e venha para o meu camarote.
— Venha o doutor para o meu, por uma noite. Ajude-me a investigar o fundo de tudo isto.
— O senhor vai investigar, mas é outra qualidade de fundo, se persistir em tentar isso. — Qual? – perguntei eu.?— O fundo do mar. Vou deixar este navio. Não é seguro.?— Então, não me ajuda a procurar?…
— Qual história! – exclamou o doutor vivamente. Tenho obrigação de conservar o juízo e não de me ir meter com fantasmas e coisas do outro mundo!
— Mas pensa que, na realidade, seja um fantasma? perguntei, eu, um pouco desdenhosamente. Mas, de repente, lembrei-me da horrível sensação de qualquer coisa sobrenatural que se apoderara de mim na noite antecedente. O doutor voltou-se decidido para mim.
— Acha alguma explicação racional para esses fatos? – perguntou ele. – Não, não acha! Bem, o senhor diz que há de arranjar uma explicação. Eu afirmo que não arranjará, muito simplesmente porque não há explicação alguma.
— Mas, meu caro senhor, – retorqui eu, – então o senhor, um homem de ciência, diz-me que essas coisas não se podem explicar?
— Digo, – respondeu ele, com energia. – E, se o pudessem ser, eu é que não quereria tomar parte na explicação.
Não me agradava nada passar outra noite sozinho no camarote, contudo, estava resolvido a determinar a origem daquilo tudo. Não creio que haja muitos homens que dormissem lá sozinhos, depois de passarem as duas noites que eu passei. Mas resolvi tentá- lo, se não encontrasse alguém que quisesse ficar comigo. Evidentemente, o médico não se sentia inclinado a tentar a experiência. Dizia que era médico, e que, no caso de se dar algum acidente a bordo, precisava estar a postos. Tinha de estar com a cabeça no seu?lugar. Talvez tivesse razão, mais inclino-me a pensar que todas estas precauções eram causadas pelo medo. Informou-me que não havia ninguém a bordo que me acompanhasse nas minhas investigações, e, depois de mais algumas palavras, deixei-o. Dai a pouco, encontrei o capitão e contei-lhe o caso. Disse-lhe que, se ninguém quisesse passar a noite comigo, pedia que deixassem a luz acesa toda a noite e que eu tentaria a experiência sozinho.
— Olhe, – disse ele, – vou lhe dizer o que farei. Ficarei consigo, e veremos o que acontece. Tenho a certeza de que nós ambos havemos de dar com o caso. Talvez haja alguém escondido a bordo, que apanhe uma passagem de graça, assustando os passageiros. Talvez haja mesmo alguma coisa a consertar no beliche.
Observei que seria bom levarmos o carpinteiro, para examinar o beliche; fiquei muito satisfeito com o oferecimento do capitão para passar a noite comigo. Mandou chamar o carpinteiro e disse-lhe que fizesse o que eu ordenasse. Descemos imediatamente. Desmanchei a cama do beliche de cima e examinamos tudo para ver se haveria alguma tábua solta ou algum caixilho que pudesse ser aberto ou empurrado. Experimentamos todas as tábuas, sondamos o chão, desaparafusamos o beliche de baixo e desmanchamo-lo todo; em suma, não houve um centímetro quadrado que não fosse revistado e experimentado. Estava tudo em perfeita ordem e pusemos tudo outra vez no seu lugar. Quando estávamos acabando a nossa tarefa, Roberto chegou à porta e olhou para dentro.
— Então, senhor, o que é que encontrou? – perguntou ele com um sorriso macabro. — Tinha razão, a respeito da vigia, Roberto, disse eu, dando-lhe a libra prometida.
O carpinteiro trabalhava em silêncio e com jeito, seguindo as instruções que lhe dava. Quando acabou, disse-me:
— Eu sou um homem franco, senhor. Tenho a convicção de que o melhor era o senhor tirar daqui as suas cousas, e deixar que eu aparafuse a porta do camarote. Este camarote ainda não deu nada de bom. Já, aqui, morreram quatro pessoas, que eu saiba, e isto em quatro viagens. É melhor deixá-lo, meu senhor, é melhor deixá-lo!
— Vou experimentá-lo ainda uma noite, – atalhei.
— É melhor deixá-lo, meu senhor, é melhor deixá-lo! Não sai daqui nada bom, – repetiu o carpinteiro, metendo a ferramenta no saco e indo-se embora.
Todavia, tinha ficado muito animado com a perspectiva de ter a companhia do capitão e formei tenção de não deixar que me impedissem de chegar até o fim daquele estranho caso. Abstive-me, nessa noite do Welsh rabbitt e do grog e nem sequer tomei parte na partida de whist do costume. Queria confiar absolutamente nos meus nervos e a minha vaidade fazia com que desejasse mostrar boa figura aos olhos do capitão.
O capitão era um daqueles lobos do mar valentes e cuja coragem, presença de espírito e sangue frio, no momento de perigo, fazem com que chequem natural- mente às posições de maior confiança. Não era homem para se deixar levar por histórias e bastava o fato de ele desejar reunir-se a mim nas minhas investigações para provar que ele pensava que havia qualquer cousa séria que não podia ser explicada, pelas teorias vulgares, nem tida como =a superstição ordinária. Aliás, a sua reputação, bem como a do navio, também estava envolvida no caso. Não era brincadeira perder passageiros pela borda afora, e ele bem o sabia.
Pelas oito horas da noite, quando fumava o meu último charuto, ele veio ter comigo e levou-me para um canto, fora do caminho dos outras passageiros, que passeavam no convés. — Isto é cousa muito séria, Senhor Brisbane! – disse ele. – Temos que nos conformar: ou a não ver nada ou a Passar um mau bocado. Como vê, não posso levar isto a rir e peço- lhe que ponha o seu nome no relatório do que se passar. Se não acontecer nada, esta noite, continuaremos. amanhã e depois. Está pronto?
Seguimos para baixo e entramos no camarote. Quando fomos para dentro, pude ver Roberto, o criado, que estava um pouco para baixo do corredor, observando-nos com o seu sorriso habitual, como se tivesse certeza de que qualquer coisa terrível ia acontecer. O capitão fechou a porta a chave.
— Talvez fosse melhor põr a sua mala encostada à porta, – recomendou. – Um de nós podia se sentar nela. Assim, ninguém poderá sair. A vigia está fechada?
Estava como a tinha deixado de manhã. De fato, sem usar uma alavanca, como eu fiz, ninguém a podia abrir. Afastei as cortinas do beliche de cima, para poder olhar bem para dentro. Por conselho do capitão, acendi minha lanterna portátil e coloquei-a de modo a que iluminasse os lençóis de cima. Insistiu em ficar sentado na mala, dizendo que queria poder jurar que tinha estado encostado à porta.
Depois, pediu-me para darmos uma busca ao camarote, operação que se fez depressa, por consistir simplesmente em olhar por baixo do beliche inferior e por baixo do sofá que ficava ao pé da vigia. Estava tudo vazio.
— É impossível que algum ente humano entre aqui.
— Bem, – disse o capitão, sossegadamente. – Se agora virmos alguma coisa, ou é imaginação ou qualquer coisa sobrenatural.
Sentei-me na borda do beliche de baixo.?— A primeira vez que isto aconteceu, – disse o capitão, cruzando as pernas e encostando-se à porta – foi em março. O passageiro que dormia aqui, no beliche de cima, averiguou-se que era um doido, pelo menos sabia-se que era fraco da cabeça e tinha tomado a passagem às escondidas dos amigos. Correu para fora, no meio da noite, e deitou-se ao mar antes que o oficial de quarto o pudesse evitar. Paramos e deitamos um escaler; a noite estava serena, mas não foi possível encontrã-lo. O seu suicídio foi, mais tarde, atribuído à loucura.
— Acontece isso muito? – perguntei, distraidamente.
— Não… muitas vezes, não – respondeu o capitão. Nunca me aconteceu, se bem que tenha ouvido dizer que tem acontecido noutros navios. Ora, como estava dizendo, isto teve lugar em março. Na viagem seguinte…Para onde está o senhor a olhar? – perguntou ele, suspendendo repentinamente a sua narração.
Creio que não respondi. Tinha os olhos pregados na vigia. Parecia-me que o parafuso se estava movendo muito devagar, mas tão devagar que não tinha a certeza que se estivesse movendo. Olhei com atenção, procurando fixar na mente a posição e tentando certificar-me se a mudava.
— Mexe-se! – disse ele, num tom de convicção. Não, não se mexe… – acrescentou, daí a pouco.
— Se fosse o parafuso que estivesse solto, – observei – já se teria aberto durante o dia. Mas encontrei-o, esta tarde, tão bem apertado como o deixei esta manhã.
Levantei-me e experimentei o parafuso. Estava de fato lasso, porque, com um certo esforço, podia movê-lo com as mãos.?— O que é esquisito, – disse o capitão, – é que a segunda pessoa que desapareceu, parece que se atirou por aquela vigia. Que noite terrível que passamos! Foi alta noite, e o mar estava encapelado, deu-se um alarma que havia uma vigia aberta e que a água estava a entrar por ela adentro. Desci e encontrei tudo inundado; a água entrava sempre que o navio se inclinava e a vigia estava pendente pelos fechos de cima. Bem, conseguimos fechá-la, mas a água causou algumas avarias. Desde essa noite que este camarote, de tempos a tempos, cheira a água salgada. Supusemos que o passageiro se tivesse atirado pela vigia, mas só Deus sabe como ele o conseguiu fazer. O criado dizia-me, sempre, que não podia ter aqui nada fechado. Palavra que me cheira, agora; não lhe cheira? – perguntou ele, aspirando o ar, desconfiado.
— Cheira-me… e muito! – concordei, estremecendo, à medida que aquele cheiro de água estagnada se tornava mais forte no camarote.
— Ora, para cheirar assim é necessário que o camarote seja úmido, – continuei, – e, apesar disso, quando eu e o carpinteiro o examinamos, esta manhã, estava tudo perfeitamente seco. É deveras extraordinário. . . olá!
A minha lanterna portátil, que estava pendurada no beliche de cima, apagou-se de repente. Ainda vinha bastante luz da bandeira de vidro fosco da porta, por detrás da qual brilhava a lâmpada do costume. O navio balouçava muito e a cortina do beliche de cima vinha até o meio do camarote e voltava para trás. Levantei-me rapidamente da borda da cama, e, no mesmo instante, o capitão pôs-se também em pé, dando um grito de surpresa. Tinha-me voltado para apanhar a lanterna e examiná-la, quando lhe ouvi a exclamação e em seguida gritar por socorro. Saltei para o seu lado. Lutava com toda a força com o parafuso de latão da vigia. Parecia mover-se-lhe nas mãos, apesar dos seus esforços. Pequei na bengala, um pesado pau de carvalho que costumava trazer sempre comigo, meti- o pela argola e puxei por ele, com toda a força. Mas a forte madeira estalou de repente e?eu cai no sofá. Quando me levantei, a vigia estava completamente aberta e o capitão encostado à porta, pálido de morte.
— Há qualquer cousa naquele beliche!. disse ele, numa voz estranha e com os olhos quase a saírem-lhe da cara. – Segura a porta, enquanto eu vejo… desta vez, não há de escapar-nos, seja lá o que for!
Mas, ao invés de ir ocupar o seu lugar, saltei a cama de baixo e agarrei em qualquer cousa. que estava no beliche de cima.
Era qualquer coisa sobrenatural, horrível, indizível, e movia-se nas minhas mãos. Era como o corpo duma pessoa afogada havia muito tempo, contudo, mexia-se e tinha a força de dez homens vivos. Mas agarrei com toda a força, naquela coisa escorregadia, lamacenta, horrível. Os olhos, brancos e mortos, pareciam olhar para mim no meio da escuridão; tinha o cheiro podre de água salgada que se tivesse estagnado e os cabelos luzidios caíam-lhe em ma- deixas molhadas, pela cara cadavérica. Lutei com aquela coisa morta; deitou-se sobre mim fez-me recuar e quase que me quebrou os braços; enrolou os seus braços cadavéricos à roda do meu pescoço, subjugou-me e, por fim, gritei, caí e larguei a presa.
Quando caí, aquela coisa saltou por ciIna de mim e atirou-se ao capitão. A última vez que o vi à pé, tinha a cara pálida e os lábios cerrados. Pareceu-me que deu uma grande pancada naquela coisa e, depois, também ele caiu para diante, com um grito inarticulado de dor.
A coisa parou um instante pareceu pairar sobre o corpo estendido, e eu teria gritado de terror, se ainda tivesse voz. Aquilo desapareceu de repente, e pareceu-me aos sentidos desordenados que saía pela vigia aberta; como foi isso possível, é que ninguém pode dizer. Fiquei muito tempo no chão e o capitão ao meu lado. Por fim, recobrei os sentidos parcialmente e vi logo que tinha o braço partido: o rádio do antebraço esquerdo ao pé do pulso.
Levantei-me com dificuldade e, com a mão que me restava, tentei levantar o capitão. Gemeu, moveu-se e afinal, voltou a si. Não estava ferido, mas parecia atordoado.
Acabei a viagem no camarote do médico. Tratou-me do braço partido e aconselhou-me a que não me tornasse a meter com fantasmas e com coisas do outro mundo. O capitão estava muito calado, e nunca tomou a navegar serviço. E naquele navio, apesar de ele ainda estar de também eu não tenciono tornar a embarcar nele.
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