Pandemônio – Gabriel Antoun

Mais fácil convencer uma legião de demônios a adorar a deus do que entender a mente humana. Na ausência da Luz a escuridão prevalece.

Lúcifer

Pandemônio

Gabriel Antoun

Não há lembranças muito claras de como tudo começou e os pouquíssimos que as têm se recusam a acreditar. Nos meses subsequentes ao que ficou melancolicamente conhecido como Pandemônio, virou hábito fazer uma força descomunal para enterrar nas profundezas da mente as memórias funestas daquele hediondo período de horror sob o qual tudo foi jogado aparentemente sem razão ou critério.

Digo aparentemente pois, em verdade, havia razão. Muitas razões. E muito claras, diga-se de passagem. E o ímpeto de esquecer esses momentos demoníacos tem como principal fonte um sentimento de remorso mesclado com medo que absolutamente todos os viventes daquele vilarejo carregavam dentro de si. A verdade é que o lugar já estava submerso em lascívia, corrupção, velhacaria e mais uma vasta lista de sordidezes acometidas pelos seus habitantes. Nenhuma delas abertamente assumida, mas todas elas repulsivas a sua maneira. Há muito os habitantes de lá já tinham se desviado do caminho da sensatez em uma busca egoísta, sem medir consequências. Portanto era comum ouvir nas mesas das tavernas, aos sussurros, histórias como a do banqueiro que cegou a mulher para ela não descobrir o segredo do seu cofre. Ou do jovem que mantinha relações íntimas com as meninas da cidade mesmo ciente da enfermidade que carregava em seu sangue. Porém, a lista mais vasta e com os relatos mais escabrosos era atribuída a uma grande congregação religiosa ultra ortodoxa praticante dos mais desregrados sortilégios ocultos, variando de sacrifício de animais à execuções em praça pública. Incontáveis carcaças já foram encontradas em valas e outras tantas amarradas em pedras ou cercas com marcas como se a vida lhes tivesse sido drenada à força durante algum ritual maléfico.

Apesar de tudo, em geral, o vilarejo vivia de forma pacata, numa total sensaboria, como se não houvesse razão para sair de seu habitual conforto. Na realidade todos sabiam tudo que se passava nos meandros da aparente calmaria, mas ninguém assumia saber. Não queriam saber. Daria trabalho demais e no final das contas, o que poderiam fazer para evitar a ordem “natural” das coisas? Sempre foi muito mais fácil deixar que os disparates tomassem conta dos acontecimento e logo em seguida apontar o dedo para achar um culpado. Seja ele a vítima, algumas vezes jazendo sem vida em algum buraco raso, seja ele o culpado, que por sua vez seria executado em praça pública das formas mais grosseiras sob os histéricos e enlouquecidos gritos dos moradores, como se estivessem assistindo à um fabuloso espetáculo de luz e som.

O vilarejo ficava a meio caminho entre outras duas grandes cidades, uma ao sul e outra a leste. Diziam ser lugares relativamente prósperos, principalmente no que tangia comércio de peles e ferragens, o que fazia com que o intercambio de carroças e viajantes entre as duas grandes cidades fosse grande. E não havia outra forma de conexão entre ambas sem que fosse através do medonho vilarejo em questão. Ao norte do vilarejo ficava uma cadeia montanhosa gigantesca envolta por pântanos intransponíveis e a sudoeste um deserto árido recheado de saqueadores e onde se perder era a melhor das hipóteses para os que se arriscavam na façanha de cruza-lo. Todo o restante da região era coberto por uma imensa e sombria floresta, portanto, não possuía estradas. De fato não existia nenhuma alternativa às carroças de mercadores que não fosse passando pela cidade.

Eu não tinha opção. Infelizmente nasci e cresci nessas redondezas.

Após descolar do útero de minha mãe, a primeira superfície que minha pele tocou foi a terra imunda do estábulo onde morávamos. Cresci vendo as falcatruas e malevolências de meus conterrâneos. Meu pai morreu após uma briga no bar. Aparentemente o dono da taverna achou inaceitável um homem não ter dinheiro para pagar uns tragos de rum barato e preferiu deixar que seus punhos fechados falassem por ele. Minha mãe não teve um destino muito diferente. Após a morte do marido, passou a dedicar a vida a dar sustento à essa criança que, até então, tinha 8 anos. Mas para os estapafúrdios padrões da asquerosa vila, uma mulher não pode ficar sem servir propriamente a um homem. Logo uma onda de assédios começou porém terminou muito brevemente pois foi acusada de bruxaria por ter resistido aos “encantos” gordurosos do açougueiro e por isso iria para a fogueira.

Onde está a relação entre os fatos pouco importa. Acontecimentos como esses eram comuns e empolgavam a monotonia do lugar. Todos sabiam que tratava-se de um porco imundo com sede de vingança por ter sido rejeitado. Mas pouco importava isso agora. Iam perder a chance de gritar maldições em altos brados e assistir na primeira fila um corpo ser incinerado? Claro que não!

Com menos de 9 anos de idade já tinha perdido meus pais para a demência psicótica que regia a cidade.

A origem dessa loucura toda ninguém sabe ao certo. Os mais antigos diziam que a cidade inteira foi construída em volta de uma das portas do inferno em tempos imemoriais. Até onde o aldeão mais antigo conseguia resgatar das lendas mais remotas e arcaicas, vasculhando em pergaminhos e através de contos e fábulas passadas no decorrer de centenas de gerações em incontáveis eras, havia uma cripta e dentro dela, escadas infinitas que levam a profundezas abissais onde a claridade do sol ou qualquer outro tipo de luz não passa de uma lenda remota. Possivelmente a cripta existia antes mesmo da humanidade como conhecemos andar pela terra e é admissível que as medonhas escadas tenham sido construídas por seres indescritíveis que me reservo ao direito de não ousar tentar descrevê-los ou sequer imaginar a silhueta de sua aparência com receio de cruzar o limiar entre a sanidade e a loucura, o que seria um caminho sem volta.

Diziam também que o antiquíssimo sepulcro de pedra lodosa, já enegrecido pelos milênios de exposição ao tempo, fora construído sobre a entrada da cripta a fim de impedir a ingresso de cientistas, aventureiros desavisados ou qualquer outro ser que por alguma razão inexplicável duvidasse da força inexorável da perversidade que emanava dos túneis agourentos.

Não haviam razões para dúvidas. Desde o dia em que primeira pedra foi empilhada para a construção do vilarejo em volta do sepulcro, nada, absolutamente nada, num raio de 50 metros para todos os lados ficou de pé, cresceu ou floresceu. O solo era árido e seco, um solo morto. Não foi possível plantar árvores ou nenhum tipo de hortaliça pois as sementes não germinavam e as mudas secavam em poucas horas. Também não era compreensível a razão pela qual nenhuma casa ou cabana não se mantinha de pé por mais de 2 semanas, sempre sendo derrubada pelas mais inexplicáveis razões. Ventos fortíssimos em dias claros. Tremores de terra repentinos. Ou até mesmo desabamentos sem qualquer tipo de espaço para explicação. De modo que a cidade foi construída  literalmente em volta do sepulcro, e, se visto de cima, havia um círculo perfeito imediatamente no meio do aglomerado de casebres, com um ponto geometricamente no centro do círculo. A pavorosa cripta.

A lenda ainda dizia que uma entidade maligna vigiava a escadaria, assegurando que todas as atrocidades cotidianas da cidade passassem despercebidas por viajantes inesperados. E de fato assim aparentava ser, pois aos olhos de transeuntes eventuais, o vilarejo, à luz do dia, lógico, parecia um agradável lugar para se passar uma tarde. Porém os poucos que se aventuravam a pernoitar em alguma das hospedarias pestilentas, passavam por experiências traumáticas durante a noite. Pesadelos tão reais que levavam os adormecidos a somatizar o que viam. Já houve casos de pessoas que dormiram e nunca acordaram, ou que acordaram de frente para o espelho em pé, com poucos segundos de vida restantes, mas curtos o suficientes para perceberem que elas mesmas tinham cravado uma faca no próprio peito. O mais comum era o recorrente pesadelo no qual a pessoa se via de fora, como se estivesse flutuando e olhando para baixo, se vendo deitada na cama. O seu “eu” adormecido recebia uma visita de uma figura negra disforme que deixava um rastro sinistro e pegajoso por onde passava e exalava um odor pútrido de carne em decomposição. A figura parava ao lado da cama, estendia algo similar a um braço apodrecido, apontava um dedo leproso para o corpo deitado e soltava um grito de profunda agonia, de enregelar os ossos e despedaçar a alma. O rugido era seguido de uma gargalhada mórbida e longa, que retumbava por todo o quarto, estilhaçando todos os vidros. A criatura pronunciava algumas palavras ininteligíveis de mau agouro num tom ameaçador de advertência e então recolhia o braço e retornava para as trevas. Logo pela manhã o viajante acordava estarrecido porém incrédulo, pagava pelo pernoite e sob olhares soturnos se despedia e seguia seu rumo. Os que não tinham tanta sorte de somente ouvir o sermão hieroglífico do negrume ambulante, e por alguma razão acabavam por perder a vida, tinham seus corpos carregados pelo estalajadeiro e arremessado em mais uma cova improvisada nos arredores do cemitério. Tal pesadelo fazia parte da cidadela de forma que não havia praticamente nenhum habitante que não tenha, pelo menos uma vez na vida, experimentado o pavor inenarrável de se ver na presença asquerosa daquele ser pútrido que parecia carregar em sua voz toda a maldade cósmica e cada palavra feria os tímpanos de forma incurável como uma maldição indissolúvel.

Se a cidade era de fato regida por algum maestro infernal, cuidando para que o mundo externo não enxergasse as atrocidades que lá aconteciam e, o mais importante, garantindo que nenhum dos conterrâneos desse devida atenção ou demostrasse uma singela nesga de remorso ou arrependimento pelos seus atos ou omissão dos mesmos, não sei dizer. Creio que ninguém saiba. Mas conflitando o comportamento nocivo praticado pelos vilarejos com a calamidade sobrenatural generalizada que se impôs no local, tendo a criar correlação entre ambos. Mas por outro lado me questiono sobre o inconsciente coletivo dos moradores. Não seria possível que lá vivessem pois tinham em comum comportamentos questionáveis e por conta disso se aproximaram uns dos outros para poderem se manifestar sem que fossem julgados ou questionados por ninguém? Ou seria a proximidade dessa cripta supostamente malévola que tornava o lugar hostil e inóspito, atordoando o bom senso dos moradores levando-os a encarar tais azares como triviais?

Não tenho a resposta para tais perguntas mas sei que não poderia me manter por muito mais tempo naqueles domínio pois incutia-me uma memória áspera de perda de meus pais. A todo momento me recordava e culpava a todos os que ali moravam pela façanha. Eu precisava partir de qualquer forma.

Ao longo dos anos aprendi a me esquivar de grandes acontecimentos e grandes aglomerações. Decisão sábia pois a desgraça implacável que se instaurou na vila apenas aumentou durante esses 20 anos que separaram o Pandemônio do dia em que meus pais foram amputados da minha vida. As atrocidades aumentaram a níveis incalculáveis, inversamente proporcional ao senso humano dos cidadãos. Mas junto com as barbáries, cresceu também o cinismo e o total desapego. De forma que nada tinha mudado de fato nessas duas décadas. Apenas acentuado.

Vale lembrar que com muita dificuldade grafo aqui essas palavras pois eu mesmo não tenho certeza se enlouqueci ou não, como muitos outros. Qualquer um em minha situação carregaria a mesma dúvida. Ao reler essas palavras, questiono minha sanidade e a veracidade dos acontecimentos pois eles vão muito além do inacreditável, totalmente inconcebíveis. Mas não me culpo pela dualidade de opinião. Eu mesmo provavelmente seria o principal líder de uma guilda de céticos caso não estivesse presente e tivesse acompanhado tudo de perto. Bem mais perto que jamais desejaria estar.

Ao que parecia, o circo dos horrores se perpetuaria para toda a eternidade. Minha única escolha era juntar meus trapos e encarar uma longa jornada até uma das cidades próximas e tentar minha vida do zero. Obviamente não seria assim tão simples. Já havia tentado chegar a cidades ao sul e a leste anteriormente. Das duas últimas tentativas não obtive sucesso e fui enxotado em frente aos portões quando os guardas constataram de onde eu vinha. A reputação do meu vilarejo de origem já alcançava larga notoriedade, a ponto de suscitar preocupação nos moradores de cidades adjacentes. Ter um emigrante nativo daquelas terras agourentas só podia ser um mau presságio que deveria ser evitado a todo custo. Largar tudo e peregrinar sem rumo não era uma opção pois as noites eram demasiadamente frias e perigosas, repletas de vigaristas e criminosos em busca de lucro fácil.

Mas já tinha atingido meu limite suportável. Independente do histórico de insucessos estava convencido a tentar novamente, nem que para tal fosse necessário assumir nova identidade a fim de ludibriar os guardas dos portões das cidades vizinhas. Estava determinado a seguir tal intrépida tarefa e no meio tempo em que pesquisava em mapas quais as melhores direções e perguntava para pessoas em quem confiava (as pouquíssimas que ainda sobravam) qual das cidades era a mais próspera, comecei a juntar provisões para uma longa jornada e fundos para um mínimo custo que eu poderia ter com hospedagem e emergências. Ensaiei também o enredo de minha nova apresentação sob um nome falso e origens confiáveis. Pelos meus cálculos, conseguiria partir em menos de um mês caso mantivesse o emprego que tinha na oficina do moleiro. Mas de fato não seria nada simples, ainda mais considerando a sequência de eventos que se sucedeu em pouquíssimas semanas em decorrência de inusitada visita do mais novo hóspede do vilarejo.

Enquanto eu me preparava para partir e toda a cidade seguia sendo singular a seu modo; enquanto visitantes iam e vinham, cada vez em menor número; enquanto as barbaridades seguiam sucedendo-se desenfreadamente; disfarçado nessa desordem frenética, um andarilho em especial adentra os limites da cidade sem chamar a atenção ou levantar suspeitas. Mas por alguma razão sua presença me bafejava desconforto e pouca confiança. Sem nenhum fundamento palpável, tinha certeza que minha vida se desviaria ainda mais dos objetivos que tracei a partir do momento em que aquela presença exótica cruzou os limites do povoado.

Tratava-se de um velho envolto em um manto negro corroído e mofado. Apoiava-se em uma bengala de madeira que mais parecia ser um galho recém encontrado no canto da estrada. Mancava e fedia muito e causava asco por onde passava. Muitos o trataram como um pobre indigente, um mendigo que porventura chegou até ali e que certamente traria boas risadas para os que lá moravam, já que há muito tempo nada de novo se passava. Dormiu na rua na primeira noite e sob uma ponte na segunda. Não demorou muito para que fosse aberta uma loteria de apostas sobre quando e onde o velho cairia morto. Não comia pois não possuía nenhum dinheiro e sobrevivia de restos que encontrava no chão e doações de outros viajantes que por ali passavam.

Apesar de aparentar ser uma figura decrépita aos olhos de quem vê de longe, os que conseguiam suportar seu cheiro horrendo de imundície, chegavam mais perto e olhavam em seus olhos, viam que eles carregavam uma profundidade peculiar, com uma firmeza intimidadora mesclada com uma petulância insolente. Mas aparentava portar uma sabedoria antiga e misteriosa. Havia mais, muito mais ali que apenas um manto fétido e uma barba que parecia não ter sido cortada há décadas.

Bom humor e cordialidade não faziam parte do seu repertório. Era um homem duro, seco e sombrio. Não dizia de onde vinha nem para onde ia e cortava rudemente qualquer tentativa de conseguir informações sobre ele que fossem além do que pudesse ser visto. O perfil azedo e agourento do velho encaixou tão perfeitamente com o clima hostil da cidade que, antes mesmo que fosse possível virar piada, já tinha sido acolhido pelos cidadãos.

Seu tom mau humorado era curioso e as pessoas, exceto a mim, achavam engraçado ouvi-lo resmungar. Mas então um evento muito singular, e que só poderia ter acontecido nesse lugar medonho, para meu infortúnio, começou a criar corpo.

Em poucos dias as pessoas começaram a ouvir o que o velho tinha a dizer. Discursos longos e inflamados sobre vingança, rancor, raiva, ódio, traição eram proferidos com uma coerência e uma fluidez de raciocínio que não se encaixavam com aquela figura de dentes apodrecidos que mais se assemelhava a um louco desvairado.

Seria estapafúrdio o fato de muitos concordarem veementemente com o que era dito pelo velho, mas dado o absurdo incoerente que imperava no local, paradoxalmente os cidadãos começaram a demonstrar algo similar ao que pode-se chamar de compaixão. Alguns começaram a considerá-lo um sábio e a procurá-lo para aconselhamento. Logo na primeira semana, como era de se esperar, a empatia entre o velho enigmático e os sacerdotes da assembleia se solidificou a tal ponto que o velho agora se hospedava nos aposentos da irmandade e, em troca, tornou-se um sentinela do que sobrou do sepulcro sobre a malfadada cripta. Tudo começou a fazer absoluto sentido para mim. Onde mais aquela presença temível poderia ficar senão próxima à tenebrosa cripta? Parecia que ele tinha vindo até ali unicamente para isso.

Ao longo de muito séculos a catacumba que precedia a cripta e suas longas escadas sofrera a degradação do tempo e clima, sendo que hoje em dia tudo o que restava era um altar manchado e bolorento, algumas colunas que antigamente sustentavam o teto e um alçapão próximo ao altar, que provavelmente conduzia à cripta subterrânea e suas insólitas escadas. Não havia paredes, de forma que o que antigamente era uma catacumba, hoje não passava de um chão de terra batida e um altar imundo e torpe.

Pelo fato de ter-se tornado o guardião das ruínas destroçadas e sentinela do pérfido alçapão, o velho estava sempre presente durante os sermões hostis e intoleráveis que eram ministrados pelo sumo sacerdote da congregação. De tempos em tempos era convidado, como todos os integrantes da plateia vez por outra eram, a se aproximar do altar e lhe era conferido o direito de expressar abertamente o que seu implacável olhar mascarava. Certa vez, tomado por um ímpeto inexplicável, interrompe o rito e com suas palavras rascantes toma a voz obstruindo a fala dos sacerdotes alegando que eram por demais enfadonhos e tediosos. Seu discurso nessa noite foi intenso a tal ponto que  arrancou bramidos guturais e animalescos dos fiéis que em um uníssono desumano condecoraram o velho com um poder altamente perigoso. Até mesmo os sacerdotes, vendo sua autoridade sendo dissipada e absorvida como que por osmose pelo velho, aderiram ao rebanho demente tonificando ainda mais sua posição de liderança. Quando pôde-se perceber, o velho pregava e todos o seguiam.

Ele se tornou o grande doutrinador da congregação e prometia poderes inenarráveis aos que a ele seguissem sem questionar. Rituais dos mais escabrosos. Loucuras das mais ensandecidas. Bizarrices mais grotescas começaram a dominar a cidade de vez.

Quem não seguia o velho sofria consequências terríveis. Seus seguidores assumiram o papel de agentes proibitivos e se encarregavam de doutrinar forçosamente os que que ainda moravam na cidade, ao mesmo tempo que perseguiam e se incumbiam da missão de capturar os que inutilmente pretendiam fugir e trazer para o fúnebre altar com a finalidade de serem sacrificados, para deleite de toda a congregação.

Alguns poucos conseguiram fugir da cidade, mas questiono se sobreviveram à primeira noite nas estradas desérticas e inóspitas. Era mais provável que tenham  morrido perdidos em seu entorno. Outros não tiveram tanta sorte de conseguir fugir, como é o meu caso. Já tinha tido amostras reais do poder mortal da cidade aos meus 9 anos quando meus pais foram mortos e mais um pouco agora nos últimos dias de forma que, se não conseguisse fugir, precisava convencê-los que fazia parte do grupo. Fui obrigado a frequentar as seitas malignas por diversas vezes e pude testemunhar as inimagináveis pregações nas quais o velho se apresentava como o representante máximo dos poderes extranaturais, mais forte que as mais arcaicas energias. Alegava ser detentor do poder máximo capaz de desafiar toda e qualquer entidade evocando os espectros mais demoníacos. Defendia ser descendente de Hécate e dessa forma detentor de poderes mais tenebrosos que de Lilith.

Mais e mais seguidores surgiam a cada culto, espontaneamente ou através da força. A autoridade do velho era inabalável e inquestionável. O que falava virava dogma, regra. A todo tempo eu arquitetava maneiras de me ver livre daquele pesadelo, mas sempre era vedado por algum acontecimento novo. Até que tudo culminou na maior das insanidades imagináveis pelo ser humano.

Deu-se início então a um violento movimento. Falavam sobre os grandes preparativos para a seita das seitas na qual o mortiço alçapão seria aberto e o velho conjuraria a mais maléfica das criaturas jamais imaginadas a fim de desafia-la e tomar seus poderes.

Meu pavor era tamanho que não sabia o que me assombrava mais, se era a perspectiva de participar contra a minha vontade desse culto tétrico e hediondo, se era o temor pulsante de ter meu disfarce revelado e ter meu sangue oferecido como sacrifício para Hécate ou se era o fato de presenciar o velho abrir o desprezível alçapão. Tinha minhas dúvidas se o velho de fato teria tais poderes mas isso pouco importava. O alçapão e a cripta já tinham se mostrado maléficos o suficiente para me incitar um pavor descontrolado. Não pretendia ficar ali para ver aquela monstruosa demonstração de ignorância. Porém todos os meus planos de migrar para outra cidade foram extintos e não conseguia enxergar saída. O medo total e pleno se apossou de mim. Ninguém mais fazia absolutamente nada além de cultuar o velho, agora já envolvo em trajes sacerdotais.

Enfim é chegado o início dos grandes preparativos. Seriam 3 dias de preces e pregações ininterruptas e no final do terceiro dia o ápice, com a abertura das portas das trevas. Todos já estavam reunidos há dois dias em volta do altar, se revezando na vigília de possíveis dissidentes. Estávamos sem comer ou descansar propriamente, sobrevivendo a base de água e medo, sendo obrigados a participar daquele rito diabólico. O velho ficava no centro, segurando um livro e proferindo palavras tenebrosas num tom desafiador, aparentando estar cada dia mais forte e disposto. Dizia ele que para que toda a energia pudesse ser canalizada e unificada, o corpo deveria estar enfraquecido em detrimento do fortalecimento da alma. O transe era completo e meu medo mais inconcebível começou a ganhar forma. Com a chegada do crepúsculo do terceiro dia, começou. Estava acontecendo!

Atrás do mórbido altar de pedra rodeado por colunas cobertas de musgo e tochas improvisadas encontrava-se o velho, ao lado do alçapão. Conforme o velho recitava palavras segurando um livro bolorento a massa de participantes movia-se ritmadamente de um lado para o outro, segurando-se pelos ombros, como em um abraço e murmuravam KISIKIL LILAKE. KISIKIL UDDAKARA, numa ladainha, um mantra execrável. Seus olhos não mais focalizavam e estavam totalmente fora de si como se estivessem sob a ação de algum encantamento nocivo.

Enquanto todos sibilavam num hipnotismo assombroso esses diabólicos chamamentos, o velho inicia a parte final do ritual.

Com o corpo totalmente pintado de preto e acocorado em frente ao alçapão, o velho, sob o som abafado de tambores, recita ATEH. MALKUTH. VE GEBURAH. VE GADULAH. Os murmúrios começam a aumentar de volume, em uníssono. Em determinado momento a porta do alçapão chacoalha arrancando gritos dos integrantes do rito, como se houvesse alguma coisa do outro lado forçando a passagem. O chão parecia estar vibrando, como se um motor estivesse ligado nos subterrâneos da cidade. Um odor rançoso e pestilento de carne em avançado estagio de putrefação se espalha por toda a região. Era o cheiro de toda a podridão ancestral do planeta que vazava pelas frestas da frágil porta do alçapão. Seja o que for que estivesse do outro lado, atravessaria com facilidade incabível reduzindo a pó as ripas que constituíam a divisória entre o mundo externo e as profundezas. A tomar-se pelo horripilante cheiro e pela zumbido de baixa frequência, como uma vibração aterradora, o momento estava muito próximo, a entidade estava chegando.

ATEH. MALKUTH. VE GEBURAH. VE GADULAH. LE-OLAM!

Um a um os moradores se acocoraram, ainda entoando o cântico abominoso.

Eu não poderia suportar por mais tempo, precisava me afastar daquela babel diabólica o quanto antes. Tudo aconteceu em pouquíssimos minutos.

Aparentemente todos os moradores da cidade estavam reunidos e totalmente desconectados da realidade, imersos no ritual de forma que não foi tão difícil conseguir me afastar. Enquanto todos bailavam sob os ritmados rimbombar dos tambores consegui me esgueirar para um canto e sumir para longe daquele antro de insanidade. Porém, por mais que me afastasse e quanto mais distante ficava, mais claro e profundo os mantras soavam. Parecia que os poros da terra estavam respondendo àquelas palavras odiosas. Toda a população respondia. Ao som dos tambores, flautas desafinadas começaram a tocar notas inarmônicas e irritantes. O som era horrível. Conforme a população gritava o mantra movendo-se ritmadamente de um lado para o outro, o velho gritava palavras indiscerníveis e dançava desvairadamente sobre a porta do alçapão. Então veio um retumbar gravíssimo e um barulho fino. Já tinha passado do momento em que eu deveria estar longe dali, então apressei o passo e desatinei a correr. Porém o que começou com um simples recitar, após algumas repetições transmutou em uma gritaria histérica que, apesar de totalmente em pânico, não pude deixar de me virar para contemplar aquela missa tétrica. Miserável curiosidade! Virei o pescoço em direção ao altar a tempo de contemplar o velho se inclinando para as argolas metálicas que serviam como puxadores para a abertura da portinhola. Meu estarrecimento foi completo. Minhas pernas bambearam de pavor incomum ao mesmo tempo que enrijeceram-me todos os músculos dificultando inclusive o funcionamento dos meus pulmões aproximando meu cérebro de um estado de torpor por aturdimento total.

O que eu vi após a abertura do alçapão é tão profundamente execrável e pecaminoso que me faltam adjetivos que transmitam com propriedade o nível de monstruosidade hedionda daquelas cenas dantescas. Ao puxar as argolas o velho deu alguns passos para trás e com o deteriorado livro em mãos rugiu descontroladamente:

OL GOHE

DO AO IP KI-SIKIL-UD-KAR-RA

DAS I VAMAD BABALON BABALOND

PI GIU EORS CORAXO

PA MAZABA VAPAAH VOUINA

I TOLTORGI

BUTMONI PARM ZUMVAI

PA BAHAL CINILA

EOLIS OLLAG ORSABA

OD GOHIA CICELES TELOCHI

MALPIRGAY

MAZABA LILITH !

ZAMRAN LILITH !

De dento do alçapão escancarado surge então uma acortinado negro, como uma sombra tenebrosa que de tão soturna todas as luzes ao redor foram extinguidas quase que de imediato. Lentamente a massa negra começa a tomar forma. A nefasta presença daquele profundíssimo negrume era como uma implosão, como uma sucção contínua. Não somente os olhares estavam pregados sobre aquele assombroso amontoado negro, como parecia que a essência vital de cada um dos participantes do ritual estivesse sendo sugada, como sangue drenado por um vampiro. A sensação era de morte iminente. O rebanho de pessoas que há pouco canalizava energia para o sucesso do ritual estava agora totalmente aterrorizado com o que viam pois a forma final da transmutação tenebrosa era uma figura que já fazia parte do inconsciente de todos os nativos daquela vila. A figura negra e bolorenta que se arrastava de dentro das sombras nos pesadelos de todos que ousavam passar uma noite no vilarejo estava ali, de pé, bem em frente a todos, viva e se movendo. Era um pesadelo real.

O único que não aparentava temor era o velho que portava um olhar de triunfo e não desgrudava os olhos da figura, como em um orgasmo entorpecente. De resto, todos foram dominados pelo medo inconcebível e ensaiaram um movimento de fuga quando o vulto, agora totalmente formado, remove o desfiado capuz e mostra sua verdadeira face. Era um rosto esquelético, com pequenos pedaços de carne podre escorrendo dos lado. Era praticamente calva e nitidamente representava algum ser feminino ancestral que, tomando como base a profundidade de seus olhar através daquelas orbitas vermelhas como sangue, estava ali totalmente contra sua vontade e, por conta de seu forçado revivescimento disseminava uma aura de ódio profundo e asco frente àquela turba indigna de existir em sua presença.

O vulto então desgruda o braço do corpo e aponta o que poderia ser chamado de massa membranosa não fosse pelo formato dos ossos amarelados o que sugeria ser um dedo decomposto. O grito desferido pela coisa dispensa toda e qualquer tentativa de discrição. Se antes minhas pernas bambeavam, agora elas perderam totalmente as forças e cai de joelhos. Nunca tinha experimentado tamanho temor. Meu maxilar estava totalmente trincado de pânico e meu peito parecia que iria estourar. Após apontar o dedo e gargalhar longamente a figura inicia então seu sermão. Totalmente indizível e incompreensível. Eram palavras que não ouso grafar ou repetir pois eram carregadas de uma potencia maléfica incompreensível. Era a síntese da perversidade.

Durante a prédica, em meio ao caos total de pessoas que dementemente tentavam se ver longe da materialização do seu mais profundo pesadelo, era possível ver os moradores, um a um, se perderem no limbo da insanidade e se desconectarem totalmente da realidade, vendo o juízo se dissipando pouco a pouco.

Os que não enlouqueceram de imediato frente à horripilante figura feminina, mal conseguiram gritar pois antes mesmo que o ar pudesse fazer suas cordas vocais vibrarem, seus corpos já tinham sido reduzidos à um emaranhado ressequido de pele enrugada e esse resquício de massa já estava sendo tragado para as trevas, sugados para as sombras e desaparecendo por completo.

Era um Pandemônio!

Mesmo a muitos metros de distancia eu pude ver a anarquia caótica que tudo se transformou. Pessoas andando a esmo rindo e chorando totalmente fora de si enquanto outras eram sugadas para o árido universo da escuridão, com seus corpos sendo liquefeitos por alguma força invisível. Isso tudo regido por um discurso estarrecedor da figura invocada.

Após lidar com o tropel aglomerado de pessoas, a figura finalmente se vira de costas e encara o velho que agora tremia feito um diapasão. A visão da destruição completa fez com que toda a sua ousadia e sensação de triunfo fossem dissipadas ao perceber que nada poderia ser mais grotesco e potente que aquela imagem vinda das profundezas e que não haveria nada que pudesse refrear a vingança maciça que se abateria sobre ele.

Lilitu foi tudo o que o velho pode pronunciar, num tom de desespero titânico, antes que seu corpo fosse literalmente absorvido pela macabra figura, como uma espoja absorve a água. Os sons de sucção, misturados com um alarido indizível, uma balburdia completa, não eram desse mundo. A cena era estarrecedoramente pavorosa. Senti meu corpo começar a desfalecer.

Após encerar sua passagem, a figura volta ao alçapão, desce as escadas e a portinhola se fecha involuntariamente. Tudo é seguido por um poderosíssimo tremor de terra e então perdi o que me sobrava de consciência e desmaiei.

Acordei no mesmo lugar. Já era dia claro e estava tudo vazio. Onde antes ficava o altar agora era um gigantesco emaranhado de pedras sem forma. As poucas pessoas que pude ver vagueando sem rumo pelas ruas da cidade não mais conseguiam estabelecer contato com a realidade e um diálogo foi impossível. Perambulavam feito zumbis com olhar vago e perdido. Outras estavam acocoradas em cantos, totalmente imundas e mudas.

Antes que qualquer novo evento pudesse tomar forma, tomei a estrada rumo ao sul, ignorando qualquer perigo que pudesse enfrentar. Nada seria pior do que acabara de acontecer. Tinha apenas algumas certezas: O sobrenatural e sobre-humano são assim chamados pois estão muito além da nossa simplória compreensão; há forças com as quais não devemos mexer; e NUNCA mais retornaria, sequer próximo aos arredores daquela cidadela medonha e decadente. As criaturas das profundezas provavelmente ainda estarão lá por muitas eras vindouras. Porém o portal para o mundo d’além cripta estava agora fechado. Sinto que fui poupado da morte por alguma razão que não sei dizer nem me interessa. Se o intuito era que a história fosse contada, segue aqui todo o relato completo daquela horas horrendas. O Pandemônio contado por uma testemunha ocular e que nunca mais será o mesmo.