O Jogador Generoso – Charles Baudelaire

O Jogador Generoso

Charles Baudelaire

Ontem, no meio da multidão da avenida, senti-me roçado por um ser misterioso que sempre desejei conhecer e que imediatamente reconheci, embora jamais o tivesse visto. Ele, por sua vez, sem dúvida nutria, em relação a mim, desejo análogo, pois me lançou, ao passar, um piscar de olho significativo, que me apressei a obedecer. Segui-o atentamente e logo desci atrás dele até uma morada subterrânea, ofuscante, de onde irrompia um luxo do qual nenhuma das habitações superiores de Paris poderia fornecer um exemplo aproximado. Pareceu-me inexplicável que eu tivesse podido passar tantas vezes ao lado daquele fascinante refúgio sem lhe adivinhar a entrada. Reinava ali uma atmosfera sedutora, embora inebriante, que fazia esquecer quase de imediato todos os penosos horrores da vida; respirava-se ali uma beatitude obscura, semelhante àquela que devem ter experimentado os comedores de lótus quando, desembarcando numa ilha encantada, iluminada pela claridade de uma eterna tarde, sentiram neles nascer, aos sons hipnóticos das melodiosas cascatas, o desejo de jamais rever seus lares, suas mulheres, seus filhos, e jamais voltarem ao cimo das altas ondas do mar.

Havia ali rostos estranhos de homens e mulheres, marcados por uma beleza fatal, que me parecia já ter visto em épocas e países dos quais me era impossível lembrar com clareza e que mais me inspiravam uma simpatia fraterna do que aquele receio que em geral nasce à visão do desconhecido. Se eu quisesse tentar definir de alguma forma a expressão singular de seus olhares, diria que nunca vira olhos brilharem mais intensamente de horror ao tédio e de desejo imortal de se sentir viver.

Meu anfitrião e eu já éramos, ao nos sentarmos, velhos e perfeitos amigos. Comemos, bebemos além da conta todo tipo de vinhos extraordinários, e, coisa não menos extraordinária, parecia-me, depois de várias horas, que eu não estava mais embriagado do que ele. Entretanto o jogo, esse prazer sobre- humano, interrompera por diversas vezes nossas freqüentes libações, e devo dizer que eu havia jogado e perdido minha alma, em partida justa, com desenvoltura e leviandade heróicas. A alma é uma coisa tão impalpável, tão freqüentemente inútil e algumas vezes tão constrangedora, que apenas senti, em relação a tal perda, um pouco menos de emoção do que se tivesse perdido, num passeio, meu cartão de visitas.

Fumamos por longo tempo alguns charutos cujo sabor e perfume in- comparáveis tornavam a alma nostálgica de países e felicidades desco- nhecidas e, ébrio de todas essas delícias, ousei, num acesso de familiaridade que não pareceu desagradar-lhe, exclamar, apossando-me de uma taça cheia até a borda:

— À vossa imortal saúde, Bode velho!

Conversamos também sobre o universo, sua criação e sua futura des- truição, da grande idéia do século, ou seja, do progresso e do aperfeiçoa- mento; e, em geral, de todas as formas da vaidade humana. A esse respeito. Sua Alteza não poupava pilhérias entusiastas e irrefutáveis e exprimia-se com uma suavidade de dicção e uma tranqüilidade na galhofa que não encontrei em nenhum dos mais célebres conversadores da humanidade. Explicou-me o absurdo das diferentes filosofias que haviam até então tomado posse do cérebro humano e chegou a se dignar me confidenciar alguns princípios fundamentais cujos benefícios e cuja propriedade não me convém partilhar com quem quer que seja. De forma alguma queixou-se da má reputação que goza em todo o mundo, assegurou-me que era, pessoalmente, a criatura mais interessada na destruição da superstição e confessou-me que só havia temido, em relação a seu próprio poder, uma única vez, no dia em que ouvira um pregador, mais sutil do que seus pares, exclamar do púlpito:

— Meus caros irmãos, jamais se esqueçam, quando ouvirem elogios ao progresso das luzes, que a mais bela astúcia do diabo é persuadi-los de que ele não existe!

A lembrança desse célebre orador conduziu-nos naturalmente para o assunto das academias, e meu estranho conviva afirmou-me que não desdenhava, em muitos casos, inspirar a pena, a palavra e a consciência dos pedagogos e que assistia quase sempre em pessoa, ainda que invisível, a todas as seções acadêmicas.

Encorajado por tantas amabilidades, pedi-lhe notícias de Deus, e se ele o vira nos últimos tempos. Ele me respondeu, com um desprendimento eivado de certa tristeza:

— Cumprimentamo-nos quando nos encontramos, mas como dois velhos cavalheiros, nos quais uma polidez inata não seria capaz de apagar por completo a lembrança de antigos rancores.

É improvável que Sua Alteza tenha alguma vez concedido tão longa audiência a um simples mortal, e eu receava abusar. Enfim, quando a aurora tiritante lavava as vidraças, esse célebre personagem, cantado por tantos poetas e servido por tantos filósofos que trabalham para a sua glória sem se darem conta, me disse:

— Quero que guarde de mim uma boa lembrança, e quero provar-lhe que Eu, de quem se fala tão mal, sou às vezes um bom diabo, para me servir de uma de suas expressões vulgares. A fim de compensar a perda irremediável que sofreu de sua alma, dou-lhe o lance que teria ganho se a sorte estivesse a seu favor, ou seja, a possibilidade de aliviar e vencer, por toda a sua vida, essa curiosa afecção do Tédio, que é a fonte de todas as vossas enfermidades e de todos os vossos miseráveis progressos. Jamais um desejo seu será formulado sem que eu o ajude a realizá-lo; reinará sobre seus vulgares semelhantes; será cercado de lisonjas e até mesmo de adorações; o dinheiro, o ouro, os diamantes, os palácios feéricos, virão procurá-lo e implorarão que os aceite, sem que tenha feito qualquer esforço para ganhá-los; mudará de pátria e território tantas vezes quantas ditar a sua fantasia, poderá inebriar-se de volúpias, sem fastio, em países encantadores nos quais faz sempre calor e onde as mulheres cheiram tão bem quanto as flores, et cetera, et cetera… — acrescentou ele erguendo-se e me despedindo com um belo sorriso.

Não fosse o temor de me humilhar diante de tão grande platéia, eu teria com gosto caído aos pés daquele jogador generoso, para agradecer sua inaudita munificência. Mas pouco a pouco, depois que o deixei, a incurável desconfiança penetrou em meu íntimo; não mais ousava acreditar em tão prodigiosa felicidade e, ao deitar, fazendo ainda minhas preces por um resto de hábito obtuso, repeti em minha sonolência:

— Meu Deus! Senhor, meu Deus! Fazei com que o diabo mantenha a palavra dada!