Lenda dos bailarins – Manuel Bernardes

Lenda dos bailarins

Manuel Bernardes

No ano da salvação humana, 1012, imperando Henrique II, sucedeu em Saxônia que um sacerdote por nome Ruperto, presbítero da Igreja de s. Magno Mártir, havendo começado a celebrar a primeira missa da noite de Natal, não podia prosseguir, por se achar distraído com os estrondos de um baile, que ali perto se fazia. E era que um homem plebeu, por nome Otério, com outros 15 companheiros, e três mulheres, dançando e cantando todos juntos no cemitério, faziam notável ruído. Mandou-lhes pois o sacerdote dizer pelo sacristão que se quisessem aquietar; porque não era aquele o modo agradável a Deus de festejar noite tão santa. E zombando eles do recado com risadas, e dichotes, como gente de pouco entendimento, e menos temor de Deus, o sacerdote acendendo-se em zelo da honra divina, e do decoro que a seu ministro sacerdotal se devia, disse:

— Praza a Deus que um ano inteiro bailem, sem parar.

Caso estupendo, ainda somente ouvido, quanto mais visto! A boca do sacerdote o disse, e a mão do Onipotente assim o executou. Amanheceu e anoiteceu o seguinte dia, e eles a bailar. Entrou a roda de novo ano, e eles sem saírem da mesma roda da sua dança: In circuitu impii ambulant.

Passou um mês, e outro mês: acudia a gente atônita com tão raro espetáculo: dançando os achava, e dançando os deixava. Perguntavam-lhes uns uma coisa, e outros outra: a nada respondiam, nem atendiam: o seu destino, a sua tarefa, que continuavam com incessante diligência, era sô andar à roda, uns atrás dos outros, seguindo aos que os guiavam, e todos instigados do aguilhão daquela praga do sacerdote: Deus meus pone illos ut rotam. Não comiam, não bebiam, não mostravam cansaço, não se lhes gastou o calçado, nem se lhes rompeu o vestido, nem caiu sobre eles chuva. Da contínua pista, ou calcadura, sumiram-se pela terra até mais acima dos joelhos: a si mesmos parece que intentavam sepultar-se vivos, ou abrir caminho, por onde descessem a dançar ao inferno. Quis certo mancebo tirar da roda a uma das três mulheres, que era sua irmã. E pegando-lhe do braço com violência, este lhe veio na mão desmembrado do corpo, como se de uma pedra de linho separasse fora alguma estriga; ou metendo a mão na massa lêvada, trouxesse algum pouco no punho. E ela, como se o braço fosse alheio, nada disse, nem gemeu, e foi prosseguindo a dança do seu fado, sem da ferida manar sangue. Finalmente ao cumprir-se o ano, pelo Natal de 1013, veio àquele lugar s. Heriberto, arcebispo de Colônia, e os absolveu da maldição, e introduzidos na Igreja, os reconciliou com Deus. As três mulheres, como sexo mais fraco, expiraram logo. Pouco também duraram alguns dos homens: dos quais se diz que, depois de mortos, obrou Deus por eles alguns milagres, como significando o perdão de seus pecados, que por meio de tão custosa penitência tinham alcançado. Os mais que sobreviveram, sempre com o tremor de membros e espanto dos olhos, mostravam bem o terrível caso, que por eles havia passado. E cada um deles era uma estátua do escarmento, erigida para protestação da reverência que se deve aos Mistérios, aos Ministros e aos lugares Sagrados,