A Voz do Vento – Vladimir Korolenko

A Voz do Vento

Vladimir Korolenko

I

Uuuh!Uuuh! Ouve-se o terrível uivo do vento; trepidam os cristais, portas e janelas batem com estrondo; a poeira se agita em redemoinhos fantasmagóricos; o céu se vai cobrindo de nuvens cheias de ameaças; os enfermos estremecem; choram as crianças, e os vagabundos, sem teto sob o qual se abrigar, tiritam atirados sobre os bancos de pedra ou refugiados em cantos hediondos cheios de sombra. Os pássaros piam dolorosamente e as árvores grunhem.

Uuuh!Uuuh! Os culpados escondem o rosto entre as mãos recordando com horror o momento fatal de seu crime. Até os inocentes, intranquilos, voltam seus olhos para a profunda tristeza do céu, para atravessá-lo com o olhar da alma. Deus proteja os marinheiros que estão lutando contra as ondas alvoroçadas, furiosas, gigantescas — as imensas ondas que se apresentam diante de suas bocas escancaradas! Deus proteja os andarilhos que, sem rumo, vacilam agora pelos caminhos desertos dessa noite sinistra!

Uuuh!Uuuh! O vento dança freneticamente um balé macabro que nos faz cerrar os dentes. Dá cambalhotas e se mete por trás das bocas das altas chaminés, desliza pelos negros corredores sibilando sempre, retorcendo-se como um condenado. Aproxima-se do ouvido dos aterrados mortais sentados junto ao fogo ou encolhidos nalguma estância solitária e fria, para recordar-lhes os mais profundos segredos de suas vidas, os segredos que acreditavam ter enterrado para sempre. E com voz espantosa reacende suas culpas e lhes joga na cara suas infâmias, enchendo-os de assombro e terror.

As ruas estão desertas. Não se vê uma alma pelas largas avenidas nem pelas tortuosas vielas. Dentro das casas, olhos esbugalhados, corações que batem aterrorizados, frontes tensas, passos vacilantes…

Uuuh!Uuuh! O vento corre uivando na escuridão da noite, como a matilha que cruza ofegante um bosque sombrio. Uuuh!Uuuh!

* * *

Numa ruela tortuosa e cheia de trevas, em cujas curvas misteriosas se escondem o vício e a infâmia, brilhava no ponto mais alto de um edifício antigo e em ruínas uma tênue luzinha.

Adiantada a noite, todos já contemplamos essas tremeluzentes luzinhas que pressagiam dores de agonia, talvez de morte. Nossas almas se encharcam de melancolia e nossos olhos em vão tentam decifrar os amargos enigmas que se ocultam por trás daquelas pálidas e diminutas cintilações. Esgotam-se a juventude, a formosura, a vida; tudo desaparece como fagulhas perdidas num caos de trevas. Às vezes as luzinhas noturnas revelam o trabalho de alguém que sob pouca claridade move suas mãos exaustas e luta para manter abertos os olhos subjugados pelo cansaço. Quem sabe?

Indiferentes, inconscientes, passamos ao lado de silenciosas tragédias, de secretas catástrofes…

Às vezes as luzinhas que vimos brilhar muitas noites na mesma janela se apagam para sempre. Sentimos um fundo calafrio e apressamos o passo. Depressa, mais depressa…

* * *

Quem vivia lá em cima? Muito pouco sabiam. A velha Marta passava desapercebida. Saía poucas vezes de sua mísera moradia. Não falava com ninguém e os mexericos da vizinhança nunca se alimentaram dela. Era velha, muito velha. Sua boca desdentada falava com dificuldade. Seus cabelos brancos brilhavam como prata. Seus ombros descarnados haviam se encurvado dolorosamente. Seus braços eram de uma magreza de dar pena. Seu corpo enfermo agitava-se febrilmente e seus olhinhos verdes, vivazes, fosforescentes, punham dois pontos luminosos num rosto descorado e cheio de rugas.

Aquela mulher tinha sofrido muito. Terríveis desgraças haviam envenenado sua vida inteira. Acostumada à dor, tornara-se insensível aos males alheios. Estava presa num mundo de trevas e não concebia que houvesse algo além daquela rígida e impenetrável esfera. Os homens eram para ela autômatos inúteis que surgiam às vezes em seu caminho, animados por um espírito motor muito superior a eles. Sempre imersa em seus negros pensamentos, desprezava a multidão imbecil, tão estranha, tão ignorante do drama que constituía toda a sua vida.

Acocorada junto a um miserável fogo, comprazia-se em recordar as cenas de seu passado. Trinta anos antes, numa humilde casinha de uma aldeia distante, vivia feliz, sorridente, amada. Seu marido era um homem trabalhador e honesto. Todas as noites, ao voltar de seu trabalho no campo, a envolvia em seus braços fortes.Com quanta alegria ela esperava por aquele momento! Sozinha como agora, é verdade, mas que diferença entre aquela época e hoje! Naquela época esperava o homem que a adorava, era jovem e bela…Hoje estava sozinha, não só em sua casa, mas no mundo. Tremia de frio e os passos da morte se aproximavam rapidamente.

Numa noite de inverno, Marta esperou pelo marido mais tempo, muito mais tempo do que todas as noites. Exausta, cansada pelo trabalho incessante do dia inteiro, sentiu que os olhos se iam fechando suavemente, lentamente, num irresistível encanto. De repente ouviu um grito muito agudo e acordou sobressaltada: escutou por alguns minutos no mais profundo silêncio. Teria ouvido aquele grito em sonhos? Mas decidiu enfim desentorpecer o corpo e, acendendo o lampião, abriu a porta.

A noite estava escura como boca de lobo. As estrelas davam uma sensação ainda maior de solidão e frio. Marta ia avançando devagar, olhando em volta, à luz do lampião, enquanto o vento a fustigava.

Em pouco tempo, um cadáver, em meio a uma poça de sangue, surpreendeu-a lugubremente. Quando se aproximou mais, foi para cair junto dele, tensa, pálida, insensível.

Acima, nos telhados, as gatos davam gemidos arrepiantes. Às vezes também se ouvia o ganido de algum cão distante. Da taberna da esquina saíam ruídos confusos. O vento furioso arrancava as telhas. E por instantes tudo mergulhava numa paz de cemitério. Os vizinhos continuavam a dormir placidamente.

Surgiu a lua entre as nuvens…Seus raios, frios como o gelo, iluminaram os dois corpos, frios também, talvez para sempre…

II

O assassino desaparecera. O crime ficou impune. Marta recordava ainda com espanto as primeiras noites seguintes à do crime. Insone, febril, horrorizada, esperava ansiosa que chegasse o dia com sua luz benfazeja. Parecia-lhe que outro ser respirava em seu próprio quarto e nas trevas pensava ouvir a voz do defunto, a mesma voz querida: “Marta! Marta!”

Precisou comparecer diante de um tribunal de justiça que funcionava na cidade próxima. Lembrava-se ainda, como se a estivesse vendo, da sala escura, das tapeçarias desbotadas das paredes, dos tapetes puídos, do Cristo na cruz. Dos magistrados, enfáticos e rígidos, de voz cavernosa e solenes trajes negros, do teto altíssimo, das testemunhas coibidas e balbuciantes…Haviam encarcerado um rapaz inocente, que foi posto em liberdade, apesar da precária defesa de seu advogado; era um poeta que principiava sua carreira política lamentavelmente equivocado, devido a seu entusiasmo pelas frases cheias de retórica e pelos parágrafos cadenciados.

Marta voltou à sua solitária casa e cada vez enfraquecia mais. Seus poucos e distantes parentes aconselharam que saísse daquela aldeia, que para ela só guardavam recordações impregnadas de amargura. Do fundo de todos eles aflorava ao rosto um ignóbil sentimento egoísta. Para Marta, ficou claro que sob aqueles rostos compungidos nada havia além do temor de ter nos ombros uma nova carga. A pobre viúva mergulhou numa indefinível sensação de horror e de asco, e foi embora para a cidade.

Ali vivera longos anos, naquela casa desagradável e arruinada. Era um ser insignificante perdido num oceano de dor…Seus gemidos eram agora sufocados pelos de uma massa imensa que trabalhava e sofria. Mas ela, atenta unicamente a seu próprio sofrimento, chorava sozinha, abandonada, consumida…

* * *

Naquela noite estava como de costume junto à janela…Cansada, exausta pelo contínuo trabalho do dia inteiro, sentiu os olhos se fecharem, vencidos pelo sono, com uma doçura e uma delícia irresistíveis. De repente, um grito penetrante acordou-a num sobressalto. Por um longo momento ficou ouvindo no mais profundo silêncio. Marta acendeu uma lanterna e abriu a porta que desembocava nas trevas.

* * *

O ferido, sem forças para fugir, sem voz suficiente para pedir socorro, com o peito ensanguentado, sentia que a vida lhe escapava aos poucos.

Os gatos continuavam grunhindo pelos telhados. De vez em quando latia algum cão e a seus latidos respondiam outros latidos cada vez mais distantes. O vento não parava de uivar.

Com a pequena lanterna na mão e olhando minuciosamente à sua volta, Marta ia avançando devagar, golpeada por contínuas rajadas de ar tempestuoso.

Enfim deparou-se com o ferido.

— Ah! Ivan! É você? É você? Você mesmo? Há quanto tempo estou esperando você! Estava gelada de frio. Ah! Ivan! Ai, ai, ai! Pois não achei que estava dormindo naquela noite maldita! Faz trinta anos. Você se lembra? Você estava como agora, cheio de sangue e duro de frio. Você se lembra?

O ferido estremeceu.

— Marta! Marta! É você?

Mas Marta continuava a falar sem ouvi-lo.

— Não! Você não tinha morrido! Como nos amávamos! Vou levá-lo pra casa. Você vai se deitar no meu colo. Cantarei suas canções preferidas. Como antes, você se lembra?

Um suor frio escorria pelo rosto do ferido. Seus pelos se arrepiavam, batia os dentes, seus olhos apavorados buscavam uma luz no céu.

— Marta! Marta!

— Você voltou do cemitério. Está com frio, não é? Mas continuo a te amar. Te amo! Te amo! Venha pra casa. Ninguém saberá. Não tenha medo do coveiro, vamos recolocar a lápide no lugar e fecharemos depois a porta do cemitério…Ninguém saberá que você fugiu de lá. Ai, ai, ai! Você está com a cara amarela. Não pode negar que esteve enterrado!

— Cale-se! Cale-se! — implorou o ferido segurando-lhe as mãos com todas as suas forças. — Estou ferido mortalmente. Não me assassine antes com as suas palavras.

Marta arregalou os olhos.

— O que você está dizendo? Você não me ama mais?

— Perdoe-me! Estou morrendo!

— O que você está dizendo?

— Que você me perdoe. Deus quis que você assistisse à hora da minha morte. Eu…eu fui…

O estertor da agonia arrebatou-lhe o último alento. De seus lábios gelados saíam as palavras com grande dificuldade.

— Eu, fui eu, com estas mesmas mãos…

Uma rajada mais violenta cegou os olhos de Marta e apagou as palavras do ferido.

— É a sua voz, é sim, é a mesma voz que me persegue! — balbuciou o moribundo ao ouvir os sibilos do vento. — Eu, com estas mesmas mãos, matei há trinta anos o seu marido. Perdoe-me!

Marta, voltando de repente de seu desvario, atirou-se sobre aquele homem que agonizava.

— Você? Você?

— Perdoe-me! Perdoe-me!

Fez-se um longo silêncio. Marta, com as mãos crispadas pelo ódio, apertava a garganta do moribundo. Ele, com olhar suplicante, tentava impedi-la.

— Perdoe-me! Perdoe-me!

— Você não teve pena dele! Você roubou a felicidade de toda a minha vida! Você me condenou à solidão, ao desespero!

— Perdoe-me! Perdoe-me!

E o vento voltou a proferir seus mais terríveis uivos. Eram como ensurdecedoras ameaças que Marta ouvia com a cabeça inclinada. Depois sentiu que os gritos do invisível elemento iam se apagando até se converterem num suave murmúrio. E pouco a pouco a voz do vento penetrou até o fundo de sua pobre alma de mulher. Foi a voz de Deus que moveu seus lábios para dizer:

— Eu perdoo.

O ferido sorriu docemente e expirou.

* * *

As ruas continuam desertas. Não se vê uma alma pelas largas avenidas nem pelas tortuosas vielas. Dentro das casas, olhos esbugalhados, corações que batem aterrorizados, frontes tensas, passos vacilantes…

Uuuh! Uuuh! O vento corre uivando na escuridão da noite, como a matilha que cruza ofegante um bosque sombrio. Uuuh! Uuuh!

* * *

Naquela noite morreu um homem ferido. Morreu também uma mulher, que se foi extinguindo serenamente, como se vencida pelo sono.

Na manhã seguinte, os dois sorriam…enquanto o vento se afastava na ponta dos pés.