A Cidade Adormecida – Marcel Schwob

A Cidade Adormecida

Marcel Schwob

A costa era alta e sombria à luz azul clara da aurora. O Capitão da bandeira negra ordenou a abordagem. Porque as bússolas se haviam quebrado na última tempestade, não mais sabíamos qual a nossa rota ou que terra se estendia à nossa frente. O oceano era tão verde que poderíamos ter acreditado que ela acabara de brotar em plena água, por encanto. Mas a visão do penhasco nos perturbava; os que haviam consultado os tarôs durante a noite e os que estavam tontos com a erva de seu país e os que estavam vestidos de um jeito diferente embora não houvesse mulheres a bordo e os que estavam mudos tendo tido a língua cortada e aqueles que, depois de terem atravessado, acima do abismo, a prancha estreita dos piratas, haviam ficado loucos de terror, todos os nossos companheiros negros ou amarelos, brancos ou sanguinolentos, apoiados nos alcatrates, olhavam a terra nova enquanto seus olhos tremiam.

Sendo de todos os países, de todas as cores, de todas as línguas, não tendo sequer os gestos em comum, só estavam unidos por uma paixão idêntica e por assassinatos coletivos. Pois eles tanto haviam afundado embarcações, avermelhado plainas com o corte sangrento de seus machados, estripado paióis com suas alavancas de manobra, estrangulado em silêncio homens em suas redes, tomado de assalto os galeões com um enorme grito, que se haviam reunido na ação; eram semelhantes a uma colônia de animais malfeitores e díspares, habitando uma ilhota flutuante; habituados uns aos outros, sem consciência, comum instinto total guiado pelos olhos de um só.

Agiam sempre e não mais pensavam. Viviam em sua própria multidão o dia todo e toda a noite. Seu navio não continha silêncio, mas um prodigioso ruído contínuo. Sem dúvida o silêncio lhes teria sido funesto. Eles tinham, no mau tempo, a luta da manobra contra as ondas, na calmaria a embriaguez sonora e as canções dissonantes, e o rugido da batalha quando embarcações os cruzavam.

O Capitão da bandeira negra sabia de tudo isso e era o único a compreender; ele mesmo só vivia na agitação e seu horror do silêncio era tal que durante os minutos tranqüilos da noite ele puxava por seu longo manto seu companheiro de rede, a fim de ouvir o som inarticulado de uma voz humana.

As constelações do outro hemisfério empalideciam. Um sol incandescente furou o grande lençol do céu, agora de um azul profundo, e os Companheiros do Mar, tendo lançado âncora, empurraram os compridos escaleres na direção de uma enseada esculpida no penhasco.

Ali se abria um corredor rochoso, cujas paredes verticais pareciam se encontrar no ar, tão altos eram; mas em vez de sentir um frescor subterrâneo, o Capitão e seus companheiros ressentiam a opressão de um extraordinário calor, e os riachos de água marinha que se infiltravam na areia secavam tão depressa que toda a praia crepitava com o solo do corredor.

Aquela galeria de rocha desembocava num campo plano e estéril, acidentado no horizonte. Alguns buquês de plantas cinzentas cresciam na vertente da falésia, animais minúsculos, marrons, redondos ou compridos, com delgadas asas tremeluzentes de gaze, ou altas patas articuladas, zumbiam ao redor das folhas aveludadas ou faziam a terra estremecer em alguns pontos.

A natureza inanimada havia perdido a vida movediça do mar e o crepitar da areia; o ar do alto-mar fora parado pela barreira dos penhascos; as plantas pareciam fixas como a rocha e os animais marrons, rastejantes ou alados, mantinham-se numa faixa estreita fora da qual não havia movimento.

Ora, se o Capitão da bandeira negra não tivesse imaginado, apesar da ignorância da região na qual estavam, que as últimas indicações das bússolas haviam levado o navio ao País Dourado no qual todos os Companheiros do Mar desejam aterrar, não teria levado adiante a aventura, e o silêncio daquelas terras o teria apavorado.

Mas ele pensou que aquela costa desconhecida era a margem do País Dourado e disse a seus companheiros palavras emocionadas que lhes puseram desejos diversos nos corações. Caminhamos de cabeça baixa, sofrendo com a calmaria; pois os horrores da vida passada, tumultuados, elevavam-se em nós.

Na extremidade da planície, encontramos uma muralha de areia de ouro faiscante. Um grito se elevou dos lábios já secos dos Companheiros do Mar; um grito brusco e que morreu de repente, como se abafado no ar, porque, naquele lugar onde o silêncio parecia aumentar, não mais havia eco.

Pensando o Capitão que aquela terra aurífera era mais rica depois dos montes de areia, os Companheiros subiram com dificuldade; o chão fugia sob nossos passos.

E do outro lado tivemos uma estranha surpresa, pois a muralha de areia era o contraforte dos muros de uma cidade, na qual gigantescas escadarias desciam do caminho de guarda.

Nenhum ruído vital se erguia do coração daquela cidade imensa. Nossos passos ressoavam enquanto passávamos sobre as lajes de mármore e o som extinguia. A cidade não estava morta, pois as ruas estavam cheias de carroças, de homens e de animais: padeiros pálidos, carregando pães redondos, açougueiros sustentando sobre suas cabeças peitos vermelhos de bois, ladrilheiros curvados sobre carrinhos baixos sobre os quais se entrecruzavam as fileiras de azulejos cintilantes, vendedoras de peixes com seus cestos, pregoeiras de charque, mangas arregaçadas, com chapéus de palha encarapitados no alto da cabeça, carregadores escravos ajoelhados sob liteiras drapeadas de tecidos com flores de metal, corredores parados; mulheres de véus afastando ainda com o dedo a prega que lhes cobria os olhos, cavalos empinados ou puxando, exaustos, numa parelha de pesadas correntes, cães de focinho erguido ou dentes arreganhados. Ora, todas essas figuras estavam imóveis, como na galeria de um escultor que molda estátuas de cera; seu movimento era o gesto intenso da vida bruscamente suspensa; só se distinguiam dos vivos por essa imobilidade e por sua cor.

Pois aqueles que haviam tido a face colorida se haviam tornado completamente vermelhos, a carne injetada; e aqueles que haviam sido pálidos se haviam tornado lívidos, tendo o sangue fugido para o coração; e aqueles cujo rosto fora outrora escuro apresentavam agora um semblante fixo de ébano; e aqueles que havido tido a pele tisnada de sol se haviam repentinamente amarelado e suas faces eram cor de limão; de modo que entre os homens vermelhos, brancos, negros e amarelos, os Companheiros do Mar passavam como seres vivos e ativos em meio a uma reunião de gente morta.

A terrível calma daquela cidade nos fazia apressar o passo, agitar os braços, gritar palavras confusas, rir, chorar, sacudir a cabeça como alienados; pensávamos que um daqueles homens que haviam sido de carne talvez nos respondesse; pensávamos que aquela agitação fictícia interromperia nossas reflexões sinistras, pensávamos nos livrar da maldição do silêncio. Mas as grandes portas abandonadas bocejavam em nosso caminho; as janelas eram como olhos fechados, as torrinhas das vigias nos telhados alongavam-se indolentes em direção ao céu. O ar parecia ter um peso de coisa corpórea; os pássaros, planando sobre a s ruas, na beira dos muros, entre as pilastras, num passeio imóvel e suspenso, pareciam animais multicores aprisionados num bloco de cristal.

E a sonolência daquela cidade adormecida nos pôs nos membros uma profunda lassidão. O horror do silêncio nos envolveu. Nós que buscávamos na vida ativa o esquecimento de nossos crimes, nós que bebíamos a água do Lates, tingida pelos peixes narcóticos e pelo sangue, nós que empurrávamos de onda em onda sobre o mar rumoroso uma existência sempre nova, nós em poucos instantes fomos dominados por laços invisíveis.

Ora, o silêncio que de nós se apoderou tornou delirantes os Companheiros do Mar. E, dentre as pessoas de quatro cores que nos olhavam fixamente, imóveis, escolheram em sua fuga apavorada, cada um, a lembrança de sua pátria distante; os da Ásia abraçaram os homens amarelos e ganharam sua cor açafroada de cera impura; e os da África seguraram os homens negros e ficaram escuros como o ébano; e os do país situado além da Atlântida estreitaram os homens vermelhos e se tornaram estátuas de acaju; e os das terras da Europa lançaram os braços ao redor dos homens brancos e seu rosto tomou a cor da cera virgem.

Mas eu, o Capitão da bandeira negra, que não tenho pátria, nem lembranças que me possam tornar vítima do silêncio enquanto meu pensamento está de vigia, eu me atirei aterrorizado para longe dos Companheiros do Mar, para fora da cidade adormecida; e, apesar do sono e da terrível lassidão que me ganha, vou tentar reencontrar, pelas modulações da areia dourada, o oceano verde que eternamente se agita e sacode sua espuma.